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Uma disciplina chamada"Violência Urbana"
Foto de Lúcio Flávio Gondim
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

Uma disciplina chamada"Violência Urbana"

Tipo Opinião
Ilustração de Gabriel Ângelo e Abelardo Ferreira  (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Ilustração de Gabriel Ângelo e Abelardo Ferreira

Era uma manhã de maio em uma de minhas primeiras aulas como professor. Eu chegava na sala para conhecer uma turma de 3° Ano do Ensino Médio e, feitas as apresentações, confirmava com os estudantes o cronograma semanal. Disse: "Hoje vou dar três aulas, sim?". Ao que um aluno fica de pé, o dedo em riste, e diz: "Não, professor, o senhor vai dar duas mais uma!". Não entendi imediatamente a referência à disputa pelo controle do Crime Organizado e do Tráfico de Drogas entre as principais facções no Ceará, Guardiões do Estado (GDE) versus Comando Vermelho (CV). Mas logo cairia a ficha de que meu universo acadêmico pseudoprotegido cedera lugar a um novo onde eu não poderia - e hoje sou lembrado diariamente que não posso - fazer meu querido símbolo hippie de paz e amor com dedos.

Nesta escola também, como acontece especialmente com minhas muito amadas turmas de Terceirão, estabeleci instantâneos e profundos laços com aqueles quase adultos ou adultos precoces. Esse mesmo que me corrigiu quanto ao uso de numerais em sala, sentou-se próximo a mim durante o tempo de feitura de uma atividade e conversou sobre sua aproximação com o tráfico, que lhe garantiu o relógio de ouro que usava e experiências com entrega de drogas e, claro, com as armas. Estavam ali o professor ingênuo, pesquisador de um mundo mais realista artístico que realista urbano, e o estudante, mestre em um conteúdo que não aparecia no currículo, porém que é permeável em cada aula ou intervalo, tal como ronda nossas vidas, as de alguns mais que outros.

Exemplo disso é minha mãe, pedagoga e professora de grande rotatividade profissional, como acontece comumente com os profissionais sem concurso público do país. Ela traz cotidianamente para mim narrativas ou cenas em que a violência urbana adentra a escola. São casos de alunos com pais mortos, traficantes, presidiários, agressores etc. Foi ela também que, dias esses, contava, na mesa de jantar em sua casa, do seu susto ao entender a canção que seus estudantes de Educação Infantil entoavam há algumas semanas e que ela só entendera quando eu coloquei para que ela visse junto comigo uma série muito comentada nas redes sociais. "Flávio, eles estavam cantando Batatinha Frita 1, 2, 3... E caiam. Alguns, em uma pilha, como se fossem os corpos mortos!".

O episódio intertextual com a série do ano, como a intitulou tristemente meu editor aqui do O POVO, Clóvis Holanda, revela um mundo cuja sensibilidade só é capturada pelo extremo. Como conversei com Clóvis, na preparação desta coluna, a espetacularização do extermínio fascina, ainda que permeada de críticas sociais. No caso da violência, marca de "Round 6"/"Squid Game", é, em verdade, a carnificina que atrai e faz o mundo "amar" a produção audiovisual coreana com suas sequências de suicídio, tortura, tráfico de órgãos e assassinatos das formas mais variadas e cruéis em forma de jogo. A você, leitor(a/e), confesso com orgulho: assisti apenas ao primeiro e ao último episódio deste estrondoso sucesso da Netflix a título de curiosidade narrativa. Não pretendo adentrar aos entreatos desta jornada sanguinária. Talvez me basta (tentar) lidar com mais de cinco milhões de mortos de uma pandemia..

Cabe a mim, gostando ou não de contemplar a banalidade do mal arendtiana, pensar o que fazer de minhas práticas como cidadão - amedrontado em ir a uma sessão de teatro no Cine São Luiz pela absoluta falta de estrutura e segurança noturna da Praça do Ferreira; como artista, em relação direta com um mundo cada vez mais focado em shoppings e em serviços de streaming - para neles ser espectador de mais tragédias em molduras de entretenimento; e como profissional, sabendo que um tema como "chacina" mobiliza mais que qualquer debate abstrato em sala. Silenciar, disse também Hannah Arendt, é o alimento da violência. Que saibamos usar a palavra, em casa, nos apps, em uma disciplina ou projeto em sala de aula, nos nossos stories ou em uma coluna de jornal para falar sobre um mundo de resistência ao horror em que há, sim, espaço para a humanidade em trajes de delicadeza. Sem ele, seremos todes eliminades, como anda na moda dizer.

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