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Leia e escreva (, ANA MIRANDA)
Foto de Lúcio Flávio Gondim
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

Leia e escreva (, ANA MIRANDA)

Professora Vládia Braga assina a ilustração desta edição da coluna Educação&Arte (Foto: Vládia Braga)
Foto: Vládia Braga Professora Vládia Braga assina a ilustração desta edição da coluna Educação&Arte

Escrevo esta crônica (?) vendo, ouvindo e, portanto, lendo a escritora Ana Miranda, com quem tenho a honra de dividir o sábado quinzenalmente neste caderno de O POVO. Ela fala em aula aberta junto a Rômulo Silva (uma poeta, pensador e pesquisador sensível) em uma das ações do projeto "Pomar" - Laboratórios de Escritas e Mediação De Leitura, iniciativa da Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), este equipamento da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult- CE). A atividade em forma de live, além de merecer ser vista no canal do Youtube da nossa Bece, calou um velho desejo pela escrita a respeito dessa artista de obra monumental.

Ana - como a chamam os íntimos e, em especial, nossa grande amiga em comum, minha professora de vida, Maria Inês Pinheiro Cardoso - fala que dominar a linguagem da escrita é poder posto que a palavra é instrumento de guerra e de paz. Se escrita e leitura são processos integrados, saber ler e escrever é saber pensar. Quem pensa, segundo ela, assemelha-se aos deuses e deusas. Amém!

A autora de "Amrik", "Yuxin", "Desmundo", "Semírames" e outros tantos títulos nos conta que foi júri de um concurso de redação das dez melhores escolas do Brasil, tarefa que cumpriu junto a escritoras e linguistas. A aluna ganhadora do certame e que, segundo a escritora cearense, era a única que dominava todas as habilidades da escrita, recebeu como prêmio uma coletânea do bruxo amado, Machado de Assis. Contudo, a campeã já a tinha. Mais: já havia lido toda a obra.

O domínio da leitura da palavra não é matemático, é penetrante, é complexo, psicanalítico, interligados a outras áreas, acaba de dizer Ana. Seus netos, quando pequenos, tinham uma cota de leitura diária. Hoje não leem com prazer, mas escrevem lindamente, diz. Ler um livro é ler a alma de alguém, é estar no corpo de alguém do século XV e XVI, fala a pesquisadora e criadora de narrativas histórico-literárias. É nesse sentido que sugiro quase que diariamente a meus estudantes de Literatura, Gramática e Redação o desafio de afastar-se do celular com sua potência audiovisual (e bélica) para experimentar a dupla delícia da solidão ao elaborar o mundo apenas com palavras e dúvidas. Não é tarefa fácil. A escola, especialmente a pública, vem transformando-se em espaço de socialização das humanidades rarefeitas e, frente às crises múltiplas do tempo, é um lugar para alimentação do corpo antes e mais que do espírito.

Quando tenho a alegria de interagir na live e provocar os convidados sobre qual o poder da leitura e da escrita diante do fascismo e, mesmo, do nazismo que voltam a crescer no Brasil e no mundo, os artistas dizem que os regimes totalitários não querem que haja leitura. Quem lê e escreve jamais será antidemocrático. Ainda que não haja espaço para lirismos nestes tempos, como Ana viria a dizer semanas depois em roda de conversa na Pré-Bienal do Livro de nosso estado, ela não deixa de afirmar que segue sendo fundamental também trair a linguagem. "Somos cupins" disse Rômulo Silva. "E vagalumes também", pontuou nossa Fernanda Meireles, mediadora da conversa.

Quero te dizer, Ana, que ler "Dias e Dias" salvou-me de uma das primeiras grandes tristezas dessa vida, ainda quando de minha adolescência, ao ganhar uma bolsa para uma escola privada, como acontece diuturnamente com crianças e jovens imersos na briga pelo 1° lugar em quase tudo. Aquele lugar fora incapaz de acolher um menino sensível ao não se encaixar em uma turma "olímpica" em vários âmbitos principalmente no de ter, para toda a semana, o dinheiro que meus colegas tinham para um almoço no self-service. A arte, ainda bem, gosta das misérias...

Nesse espaço tive pela primeira vez uma biblioteca - espaço que você disse, em crônica recente aqui no jornal, ser o que faz de uma cidade uma cidade - a qual me autorizou a alugar livros (a da escola pública de onde eu vinha enxergava os estudantes como bárbaros iminentes e os livros, esses sim, como patrimônios). O primeiro romance que ali aluguei e fiz de amante clandestino, Ana, foi o seu obrigatório para o vestibular da nossa UFC e que contava a história da menina apaixonada por Gonçalves Dias. Com as noites de apreciação literária, deitado em uma rede após chegar das aulas, até um poema em um pacote de pão escrevi...

"Tudo o que entra pelos sentidos transforma você", acaba de dizer Ana Miranda no evento virtual. Você é uma dessas transformações para mim, querida. Leia e escreva, como quem desenha, vê pássaros e cobras (bichos-humanos, sobretudo) e faz seu pomar, Ana e caro(a) leitor(a). Das crônicas aqui no jornal, das falas virtuais e presenciais, dos desenhos, das canções e, acima de tudo, dos livros, vamos sentindo a comunicação entre árvores distantes, mas com raízes no mesmo solo, o rico chão do Ceará, que é o mundo. Prova disso é o interesse que despertei no professor de Física da escola na qual hoje atuo em fazer um projeto interdisciplinar a partir do lindo "O peso da luz" ou quando fiz meu estágio de docência em Literatura a partir do clássico "Boca do Inferno"...

P.s.: Ana, devolvo-lhe o beijo que você me deu na Bienal de 2017 e o sorriso com os olhos na aula "A voz dos cronistas". Até o próximo encontro, até a próxima página...

 

Foto do Lúcio Flávio Gondim

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