Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.
Em 2020, foi superada a marca de 280 milhões de pessoas vivendo fora de seus países de origem, que a mudança ocorre por diversos motivos, melhorar de vida, fugir da fome, da guerra, das perseguições políticas, religiosas, étnicas, que, desse total, cerca de 25 milhões são refugiados.
“Ninguém deixa sua casa a não ser que ela seja a boca de um tubarão.” Na sala, escura e gélida, fui mordida pela frase-mandíbula que se abriu na parede, à minha frente.
Eu ainda não tinha me refeito do impacto da experiência anterior, de assistir à animação dos incontáveis pontos brilhantes, nuvens de vagalumes se movendo em todas as direções no mapa-múndi, enquanto a legenda se impunha à beleza da imagem no alerta de que, em 2020, foi superada a marca de 280 milhões de pessoas vivendo fora de seus países de origem, que a mudança ocorre por diversos motivos, melhorar de vida, fugir da fome, da guerra, das perseguições políticas, religiosas, étnicas, que, desse total, cerca de 25 milhões são refugiados.
E que, diferente dos migrantes, cujo deslocamento ocorre por vontade própria, e o retorno, a qualquer momento, os refugiados são obrigados a partir e não podem voltar.
Quando retomei o fôlego, depois de me apertar no bote à deriva e de atravessar o deserto na multidão calada, depois de me arder nas mãos aquele arrancar de raízes, à espera do verde dos olhos de Rosinha se espalhar na plantação, veio a segunda mordida: “Eu não sei para onde estou indo e o lugar de onde eu venho está desaparecendo.”
A leitura dos fragmentos revelava esse limbo pantanoso, círculo dantesco a que tantos são condenados. As palavras – denúncia, memória, identidade, poesia, acalanto, transgressão –, guias dos meus passos, eram luzes brilhantes rasgando a escuridão da noite artificial, o sol esquecido do lado de fora.
Adiante, a cronologia em uma linha, sons, uma floresta de vozes, aqui e ali, árvores conhecidas, outras, indecifráveis, exóticos vegetais.
Assim é chegar sem falar a língua, sem exercer a profissão que baliza a existência, sem a cor local, sem o modo de arrumar os cabelos, de dançar, de se vestir, de comer, de honrar os ancestrais, os meus também deixaram tudo e cruzaram o oceano, embarcados no navio da esperança em tempos melhores, trouxeram neles o seu chão, “Essa terra é dentro da gente”, mais uma frase que se acende na testa da parede para nunca se apagar atrás dos meus olhos.
E mesmo muitas salas depois, muitos quilômetros distantes, muitos dias transcorridos, desde que saí pela porta do Museu da Língua Portuguesa, o tubarão me segue, a me devorar com sua boca pré-histórica, com os serrilhados de pontas agudas, das duas arcadas que se encontram, apertam, dilaceram a carne nos dentes, e sinto a dor alheia, porque é minha, nenhuma é exclusiva, a todos pertence. De onde a fera vem?
A fera nasce, cresce e nada na incapacidade de nos reconhecer no outro.
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