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Plantei em minhas mãos flores transparentes
Foto de Marília Lovatel
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Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.

Plantei em minhas mãos flores transparentes

Gratidão é bônus, não condição. Fazemos para que – mesmo que – ninguém veja, fazemos por nós o cultivo da felicidade ao nosso redor, porque é melhor viver entre as flores, que dispensam canteiros, pois é em nossas mãos que as plantamos.
Tipo Crônica
Poema de Marília Lovatel   (Foto: Acervo da Autora)
Foto: Acervo da Autora Poema de Marília Lovatel

Em dezembro de 2017, conheci a talentosa designer Juliana Kang. Tão jovem e discreta que impressiona constar no seu currículo a atuação nas empresas de Ralph Lauren e de Marc Jacobs, em NY, além da produção de conteúdo para o blog “adoro!”, da Farm. A Ju foi um desses encontros fugazes que nos acontecem e deixam um rastro de perfume de jardim. Justamente o trabalho com as flores no perfil @floriografia, criação sua, que gerou uma das minhas parcerias mais bonitas: dois posts, de palavras que escrevi, publicadas com a arte dela, na brevidade que a natureza dá às pétalas e nós damos às redes sociais.

Plantei em minhas mãos flores transparentes é a frase que tirei do "Flor esqueleto", o livro fantasma que mantenho engavetado. Já foi um dublê de romance, antes de eu converter os capítulos em contos da coletânea, ainda inédita. São fantasmas os textos que escrevemos e guardamos. Até que os publiquemos, não têm corpo, somente espírito, pairam, nos assombram. E como as ideias flutuantes podem ser capturadas, faço aqui o registro de uma intenção, de um dia lançar esse título, vindo dos buquês de pequenas corolas brancas, aparentemente comuns, que brotam no cume dos Apalaches e das cordilheiras frias do Japão e da China.

Elas têm a característica peculiar da metamorfose, quando molhadas pela chuva, são transparentes, pétalas de vidro, deixam ver a sua frágil sustentação, seu esqueleto de flor. Gosto dessa metáfora do invisível, presente em nossos pensamentos e ações, no gesto repetido, muitas vezes não notado, embora persistamos na cama que se arruma, no cabelo que se corta, no tempero que se acrescenta, na música que faz lembrar um momento, na roupa que se dobra, na almofada recolhida do chão, no carro entregue com um tanto a mais de combustível, na última prestação paga, na escolha da refeição, do filme ou da viagem, ao gosto de alguém.

Todos temos listas particulares de feitos não vistos – o que me leva a supor como seria compará-las à flor da luz, desfazer as suas invisibilidades, mas, semelhante ao sol esquentando a nossa pele no topo das montanhas onde nos isolamos, de tempos em tempos, isso dissolveria o encanto e, por outro lado, não saber o que inspiramos em outrem, nem esperar que sejam enxergadas, elevam essas delicadezas a um patamar acima dos picos mais altos.

Quanto valem as amabilidades que cobram reconhecimento? Que permaneçam sutis, ou apelemos logo para a extravagância de um coqueiro dentro do vaso no meio da sala. Cabe a nós realizar e ao outro perceber. Gratidão é bônus, não condição. Fazemos para que – mesmo que – ninguém veja, fazemos por nós o cultivo da felicidade ao nosso redor, porque é melhor viver entre as flores, que dispensam canteiros, pois é em nossas mãos que as plantamos.

 

Foto do Marília Lovatel

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