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Você sabe ser cuidadoso? Parte 1
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Nello Rangel é psicólogo, arte-terapeuta, consultor e um apaixonado pela literatura de Guimarães Rosa

Nello Rangel comportamento

Você sabe ser cuidadoso? Parte 1

Nesta e nas próximas duas colunas, o arte-terapeuta Nello Rangel convida você, leitor, a refletir sobre o cuidado que dispensamos aos outros e aos relacionamentos. Afinal, existe um tipo de cuidado melhor que o outro? Até que ponto nossos cuidados ajudam ou atrapalham?
Tipo Análise
A bicicleta do equilibrista, de Nello Nuno (Foto: Acerto Pessoal )
Foto: Acerto Pessoal A bicicleta do equilibrista, de Nello Nuno

 

O senhor beirava os cem anos quando, dentro de casa, caiu e bateu a cabeça. No hospital foi constatada uma hemorragia intracraniana. O neurocirurgião queria operar de imediato. A família, em dúvida do que fazer, procurou pelo geriatra do patriarca. Por coincidência, o doutor se encontrava no mesmo hospital e examinou seu velho conhecido. Depois, ao conversar com o neurocirurgião, propôs adiar a cirurgia.

- Acompanho este paciente já a mais de dez anos. Ele sempre surpreende. Não há nenhum sintoma neurológico. Vamos observar. Se ele apresentar alguma piora, corremos para a cirurgia.

- Mas aí pode não dar mais tempo…

- A família prefere correr esse risco. E eu concordo. A cirurgia no crânio, nessa idade, por si só, é muito arriscada. Vamos observar.

O cirurgião não gostou:

- É duro ter mais de um médico no mesmo caso!

Um mês depois a família leva a última ressonância do crânio ao neurocirurgião. Ao vê-la, ele comenta, irritado:

- Olha isso! O sangue foi absorvido!

A filha estranha o tom do médico:

- Parece até que o senhor ficou irritado com a melhora do meu pai…

- É que foi muito arriscado! Era melhor operar!

- Não sei não… Ele melhorou em tudo. É tão difícil assim para o senhor admitir que possa ter se enganado?

Algumas pessoas têm muita dificuldade para perceber o próprio erro. Algumas nunca chegam a fazê-lo. Umas tantas sabem que erraram, mas se negam a admitir. Outras têm tanto horror de perceber em si mesmo o que quer que seja de negativo que nem mesmo em sonho cogitam algum equívoco, mancha ou nódoa. Por motivos variados isso pode acontecer. Por arrogância e soberba, por horror ao sentimento de culpa, por um rigor mental que transforma qualquer erro em pecado mortal, entre outras possibilidades.

"Por isso é muito relevante que saibamos em que ponto estamos, na escala do cuidado, cada vez que supomos estar cuidando de alguém." Nello Rangel, arte-terapeuta

Uma conhecida, cujo pai idoso encontrava-se internado em um hospital, em curto espaço de tempo brigou com o médico que coordenava o atendimento, indispôs-se com praticamente toda a equipe de enfermagem, discutiu pesado com vários irmãos que não concordavam com suas intervenções no tratamento do pai e conseguiu se desentender, inclusive, com um parente com o qual ninguém conseguira tal feito antes, notório por ser calmo demais. Essa conhecida não conseguia sequer perceber o grave erro estratégico que cometia, ao brigar justamente com a equipe médica que atendia ao frágil velhinho. Também não cogitava a possibilidade, obvia, de o erro estar nela mesma.

Era evidente o sofrimento da filha diante da hospitalização de seu pai. É muito provável que ela julgasse ajudar no tratamento do pai. É provável até que ela considerasse que a sua ajuda era, de todas, a mais importante, não percebendo o tanto que era iatrogênica. 

É difícil saber a medida do cuidado. E é definidor. Se errarmos a medida, deixamos de cuidar ou até nós transformamos em seu oposto.

Quantos pais, no afã de cuidar de seus filhos, erram por excesso de zelo, e acabam se distanciando do objetivo de ajudar no desenvolvimento de suas crianças, preparando-as para a vida e para a soberania? Quantos amores se perdem, pensando que cuidavam um do outro, quando na verdade sufocavam qualquer possibilidade do relacionamento dar certo?

Por isso é muito relevante que saibamos em que ponto estamos, na escala do cuidado, cada vez que supomos estar cuidando de alguém. Na próxima semana, explicaremos melhor essa escala, tão relevante nessa época pandêmica que estamos atravessando.

 

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