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Jessé Souza: dando murro em ponta de faca
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Jessé Souza: dando murro em ponta de faca

Fazia muito tempo que o Brasil não via um pensador capaz de dar murro em ponta de faca e enfrentar, com coragem e profundidade, os grandes dilemas nacionais
Tipo Análise
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 29-11-2024: Lançamento do livro O Pobre de Direita do Jessé Souza em entrevista para o Páginas Azuis. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 29-11-2024: Lançamento do livro O Pobre de Direita do Jessé Souza em entrevista para o Páginas Azuis. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Fazia muito tempo que o Brasil não via um pensador capaz de dar murro em ponta de faca e enfrentar, com coragem e profundidade, os grandes dilemas nacionais. A academia tende a se fechar em si, a intelectualidade se especializou demais e o debate público foi tomado por tecnocratas, influencers e comentaristas superficiais e bancados pela Faria Lima. Faltava pensamento enraizado no país real e ousado o bastante para desmascarar ficções explicativas e muitas vezes fundadoras.

É nesse vácuo que se firma a voz de Jessé Souza, sociólogo nascido no Rio Grande do Norte, que pensa o Brasil a partir de baixo e por dentro, batendo nas lógicas conceituais dos centros do privilégio. Jessé enxerga o País pelo avesso. Ele desmancha mitos, desafia consensos e insiste que não há mudança sem antes encarar o espelho.

Sua obra é um esforço contínuo para explicar por que o Brasil, tão rico em cultura, criatividade e solidariedade popular, permanece prisioneiro de sua desigualdade, não apenas material, mas moral e simbólica.

Ao longo de duas décadas, Jessé vem desvelando o que chama de quatro grandes pilares da dominação no Brasil:

A desigualdade estrutural comandada pelas elites e o mito do patrimonialismo

No Brasil, a elite econômica sempre teve o controle da política, da justiça e da opinião pública. Em livros como "A Elite do Atraso" e "A Radiografia do Golpe", Jessé desmonta a narrativa de que os problemas do País são culpa de "políticos corruptos". A verdadeira corrupção está nas elites do dinheiro, que terceirizam sua dominação por meio da mídia, do Judiciário e da "classe média moralista".

Há um nervo que Jessé toca com coragem: a crítica ao patrimonialismo canônico de matriz uspiana (Sérgio Buarque e seus herdeiros). A tese do "homem cordial" e do "Estado patrimonial" virou, na prática, irmã gêmea do moralismo da elite e da classe média: tudo se explica por um suposto "vício cultural" eterno, e a culpa cai sempre no povo e nos "políticos", enquanto o dinheiro segue mandando. Essa narrativa, travestida de alta cultura, absolve o mercado, canoniza a mídia e naturaliza a humilhação social.

Jessé vira a chave: não somos ontologicamente atrasados nem incapazes de racionalidade pública "à la Weber". O que nos faltou foi projeto e disputa de sentido — e o que nos sobrou foi um sermão culpabilizador com sotaque de cátedra. Aqui, Gilberto Freyre e o trabalhismo de Getúlio Vargas aparecem menos como "complexo de vira-latas" do que o pessimismo paulista que nos condena, de antemão, a jamais construir uma modernidade própria. Em português claro: o patrimonialismo virou dogma para manter hierarquias, não lente para superá-las.

A mentira moral da classe média

Em "A Classe Média no Espelho", Jessé descreve a classe média brasileira como o braço simbólico das elites. Ela acredita que chegou onde está por mérito, e não por privilégio herdado. Reproduz o desprezo pelos pobres, defende o punitivismo e sustenta, com orgulho moralista, o edifício da exclusão social. É uma classe média que se odeia e odeia-se no pobre e se ilude com a elite.

Os pobres capturados pela ideologia da direita

Em "Os Pobres e a Direita", Jessé mergulha na contradição dolorosa de ver os mais pobres, que têm tanto a perder com o conservadorismo, apoiando a extrema-direita. Ele mostra como isso não é ignorância, mas o resultado de uma dominação simbólica, em que os valores da classe média (moralismo, ordem, esforço individual) são introjetados pelos pobres em busca de dignidade.

Os impasses da esquerda

Em seu novo livro, "A Esquerda Morreu?", Jessé lança um olhar crítico sobre a crise interna da própria esquerda. O livro parte de um diagnóstico internacional: entre os anos 1960 e 1980, o mundo viveu uma revolução expressiva liderada por jovens, intelectuais e trabalhadores, com demandas por liberdade, dignidade e justiça em todas as dimensões da vida.

Mas, segundo Jessé, a resposta das elites foi brutal: a destruição da esfera pública, a colonização da informação crítica pelas corporações e a captura das democracias pela lógica financeira. Isso esvaziou os sindicatos, corrompeu a mídia e deslocou o debate político para uma arena em que o dinheiro
e o ressentimento dominam.

Quatro fraturas expostas organizam a leitura e o nosso desconforto:

Corrupção de cima para baixo. A elite manda terceirizando: a grana manda no Judiciário, na mídia, no algoritmo e no currículo escolar. A "corrupção" vira palavra-tampa para esconder o saque de sempre.

A catequese da classe média. Ensinaram-lhe que mérito é herança bem-comportada. Resultado: moralismo punitivo, ressentimento social e uma estética do nojo travestida de superioridade cívica.

A captura afetiva dos de baixo. Sem comunidade organizada e reconhecimento, o discurso da ordem "esforço individual", "limpeza", "família" oferece pertencimento e dignidade instantâneos. O autoboicote progressista. Ao falar a língua do rentismo, "teto", "risco Brasil", "reforma inevitável", a esquerda abdicou do seu idioma: trabalho, vida comum, futuro partilhado.

 

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