Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
"Nordeste é uma ficção. Nordeste nunca houve.
Não. Eu não sou do lugar dos esquecidos.
Não sou da nação dos condenados.
Não sou do sertão dos ofendidos.
Você sabe bem: conheço o meu lugar." (Belchior).
O conceito do que hoje chamamos de intelectual nasceu em Paris, no fim do século XIX, quando Émile Zola publicou o seu "J'accuse no caso Dreyfus" (um militar judeu, preso numa ilha, sob acusação falsa de traição) e decidiu enfrentar o Estado em nome da verdade e da justiça. A partir dali surge a ideia de uma pessoa que usa a palavra escrita para intervir no debate público, mesmo sem ter mandato, nem cargo. No século XX essa figura atinge o apogeu em Jean Paul Sartre, que se via como consciência do seu tempo, e começa a se transformar nos anos 1980 com Michel Foucault, que fala menos em intelectual universal e mais em especialista, alguém ligado a um campo concreto de saber, a uma luta localizada, a uma rede de experiências. O que restou hoje do intelectual público vive espremido entre a academia, a mídia e as redes sociais, negociando visibilidade, contratos e ataques digitais.
Nesse cenário, a figura do intelectual nordestino ocupa, no campo cultural brasileiro, uma posição ainda mais incômoda. De um lado, espera-se que ele exerça uma função de intérprete da região, guardião de um repertório de imagens já estabilizadas - seca, miséria, cangaço, religiosidade popular - que alimentam tanto o regionalismo nostálgico quanto o mercado cultural exótico para consumo do Sul e do Sudeste. De outro lado, quando busca escapar desse papel, é convidado a aderir a um universalismo cosmopolita que circula pelas metrópoles globais e por suas filiais sudestinas: teorias, agendas e modas intelectuais que prometem uma cidadania abstrata no mundo ao custo do apagamento das marcas concretas de subordinação histórica.
Um livro recém-lançado, "Arendt and Adorno: Political and Philosophical Investigations", ajuda a pensar esse papel. Embora fale de dois intelectuais que, no plano pessoal, se detestavam, o excelente volume Arendt e Adorno supera as fofocas e mostra que o confronto entre os pensamentos de ambos produz faíscas que ainda nos iluminam. A partir da leitura desse livro e da ideia de judeu conceitual que atravessa vários capítulos, uma figura analítica que funciona como cifra do estranho interno à modernidade, podemos pensar o intelectual nordestino como um tipo específico de pária brasileiro (aqui no sentido de produtor de conhecimento situado na subperiferia nacional, um pensador fora do eixo de poder simbólico), que precisa fugir tanto da lógica regionalista quanto do cosmopolitismo ingênuo.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior mostrou como o Nordeste não é apenas uma parte do território brasileiro, mas uma construção imagética recente, feita de fotografias de retirantes, romances de seca, mapas de atraso, discursos de necessidade. Iná Elias de Castro analisou como essa ideia de Nordeste condenado pela geografia e pela cultura foi usada para justificar políticas, fundos e projetos que mantêm a hierarquia entre centro e periferia. Jessé Souza, por sua vez, chama atenção para o racismo de classe que estrutura o País e transforma o pobre, o negro e o nordestino em culpados permanentes pelo fracasso da Nação. Da combinação dessas leituras surge a imagem incômoda: o nordestino como judeu interno do Brasil (neste caso, pobre), corpo estranho que concentra miséria, superstição e atraso, mas que ao mesmo tempo é apresentado como fonte de autenticidade popular e de brasilidade de raiz.
Dentro desse quadro, o intelectual nordestino é frequentemente empurrado para dois lugares simétricos. No primeiro, ele aparece como intérprete regional, aquele que explica o Nordeste para o resto do País e oferece ao centro uma versão elegante e teoricamente atualizada dos estereótipos que o Sudeste espera consumir. Um personagem token que as feministas negras bem identificaram. No segundo, é convocado a atuar como guardião de uma identidade regional pura, defensor de uma nordestinidade essencial, homogênea, quase sacralizada. Nos dois casos, ele é capturado por uma lógica identitária que Adorno ajudaria a reconhecer: o pensamento que reduz a multiplicidade a uma forma fixa, seja a identidade nacional brasileira, seja a alma nordestina reificada.
A reação a essa armadilha muitas vezes assume a forma de um cosmopolitismo ingênuo. Farto de ser visto como especialista em Nordeste, o intelectual passa a se apresentar como cidadão do mundo, alinhado a debates globais e agendas teóricas importadas. Mas, se esse movimento não interroga a assimetria entre metrópoles e periferias, corre o risco de apenas apagar a marca nordestina e a experiência da desigualdade regional, trocando uma prisão identitária por outra: sair do gueto regional para entrar no clubinho abstrato do universal.
É aqui que a ideia de não idêntico em Adorno e a noção de pária em Arendt voltam a ser úteis. O judeu conceitual, em ambos, é menos um personagem histórico e mais um teste para o universalismo europeu: se a promessa de igualdade não serve para ele, então esse universal é falso. De modo semelhante, o nordestino conceitual pode ser pensado como teste do universalismo brasileiro. Se a ideia de Brasil moderno, cordial e integrado exige esquecer a experiência nordestina de fome, migração forçada e racismo de classe, então esse Brasil também é falso.
O intelectual nordestino ganha força quando assume essa condição de nordestino conceitual. Ele não fala em nome de uma essência regional, mas a partir de uma história concreta de invenção, desigualdade e dependência. Em vez de renunciar à sua marca para entrar no clube cosmopolita, usa o lugar de onde fala para desmascarar os universais que se apresentam como neutros e naturais. Em vez de celebrar um Nordeste mítico ou de varrer o Nordeste para debaixo do tapete, trata a região como constelação histórica em disputa, feita de conflitos, deslocamentos, lutas por reconhecimento e brigas por recursos.
Talvez seja esse o cosmopolitismo que nos interessa hoje: um cosmopolitismo do não idêntico, que não toma o universal como ponto de partida, mas como horizonte sempre ferido pelas vozes que ficaram de fora. Um cosmopolitismo capaz de ligar periferias entre si, de aproximar Nordeste e Amazônia, sertão e periferias urbanas, semiárido e sul global, em vez de olhar apenas para o eixo Rio-São Paulo-EUA.
Escrevo este texto pensando em muitos nordestinos que têm um pensamento, uma ideia de mundo e de Brasil, e que sabem que essa ideia, sozinha, não vai mudar o mundo. Ainda assim, não abandonam o desafio de pensar, de escrever, de falar, de ensinar. São mais numerosos do que imaginam. Se conseguirmos escapar ao papel folclórico que nos reservam e ao cosmopolitismo arrivista que nos pede para esquecer de onde viemos, talvez possamos, sim, mudar um pouco o Brasil. Pelo menos o suficiente para que o lugar quase impossível do intelectual nordestino se transforme, um dia, em lugar necessário.
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