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Anjo das ruas
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Anjo das ruas

Tipo Crônica

Faz uns dez anos que perambula pelas ruas de nossa sonsa loirinha descabelada pelo sol um negro alto, cabelos fartos, sujo, roupas em farrapos, às vezes vestida sobre outra já em tiras. Distingue-se pelo porte altivo, cabeça levantada e pelo quase silêncio que o acompanha: poucos escutam as palavras que pronuncia baixinho, não raro esbraveja com alguém imaginário ou faz estranhos cálculos matemáticos.

Não pede esmola, mas lhe dão dinheiro, roupa e comida; quase sempre redistribui ou deposita as cédulas amassadas e rabiscadas com números em baixo de cones, desses usados em sinalizações de trânsito, e de papelões de outros moradores de rua, nada guarda para o dia seguinte. Come pouquíssimo e toma café e fuma em abundância (que lhe dão sem ele ao menos pedir).

De dia frequenta os logradouros no centro: Praça Murilo Borges, Rua da Assunção, Praça Coração de Jesus e uma calçada de estacionamento na Avenida Duque de Caxias, onde passa a maior parte da tarde acocorado em silêncio; de noitinha vai em direção à Praia de Iracema até a Avenida Aquidabã, lá fica agachado em uma calçada em frente a um posto de gasolina. Não se sabe onde dorme, como faz suas necessidades fisiológicas, muito menos o que pensa e balbucia em suas quase preces noturnas.

Cumpre há uma década o mesmo ritual de sempre, dizem que ele faz as mesmas coisas, nas mesmíssimas horas (até para atravessar as ruas é sempre em locais determinados), o exato itinerário, quer faça chuva ou sol: o mesmo porte altivo, o olhar contemplativo de superioridade e paz. Não se apressa nunca, nem altera o semblante; nem se importa se ao seu lado passa uma bela jovem (que quase sempre aperta a bolsa e desce a calçada) ou outro morador de rua.

Já apareceu em diversos ensaios fotográficos sobre o Centro da cidade e foi até personagem de crônica de Airton Monte: faz parte, definitivamente, da paisagem dessa Fortaleza de Todos os Anjos-Perdidos.

Pois bem, acho que cumpriria este seu eterno ritual de perambular pelas calçadas, de se esgueirar pelos becos, de se acocorar pelas calçadas, até o final dos tempos, não fosse a alma enorme e boa do meu colega de repartição (e ex-baixista da banda de regue Rebel Lions) Jânio Alcântara, que puxou conversa, com uma paciência de Santo, com nosso personagem: descobriu o nome de sua cidade natal – Paranapanema, São Paulo) e o nome da mãe, Jandira Aparecida da Cruz (completo e com seu nome de solteira e de casada).

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O novo amigo foi a Internet pesquisar e conseguiu falar por telefone com a mãe, uma senhora forte e saudável morando no interior de São Paulo; em poucos dias se encontrava em nossa cidade a mãezona (que há mais de dez anos não sabia o paradeiro do filho) e a irmã mais nova, Sidelça, uma bela jovem parecidíssima com o nosso herói-de-rua. Jânio não ficou por aí, conseguiu internamento e tratamento dignos para o agora ex-morador das ruas sujas de nossa meretríssima loirinha descamisada pelo sol.

Moral de nosso conto de fada moderno: se uma pessoa de boa vontade (com a ajuda de outros anjos bons) consegue salvar uma vida, o que não fariam os poderes estaduais, municipais e federais se tivessem um mínimo de boa vontade, competência e solidariedade.

P.S.: Para não deixar o leitor curioso com o destino de Silvio Tadeu da Cruz, ele retornou para São Paulo, reencontrou sua avó de 99 anos de idade que não se cansava de perguntar por ele. Duas de suas irmãs moram na Europa, os outros vivem bem em Paranapanema (SP). A mãe diz que seu descontrole começou quando ele presenciou a morte, em acidente de automóvel, do irmão de que mais gostava, depois agravado pela dificuldade em pagar a faculdade de engenharia que cursava já no 2º ano, após ser despedido do banco em que trabalhava. Disse-me (sua belíssima irmã Sidelça) que ele era o mais inteligente da família, também o mais vaidoso… Termina por nos dizer, tristemente, que ele já não se encontra entre nós, faleceu de “morte natural” faz uns 2 anos.

Foto do Pedro Salgueiro

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