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De passagem
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

De passagem

Tipo Crônica

Seja religioso ou ateu, temente ou indiferente, qualquer um de nós passa por algumas situações de vida em que nos sentimos impotentes, daí buscamos respostas racionais até a exaustão, muitas vezes não as encontrando partimos para as costumeiras soluções "mágicas", sejam as milenares crenças religiosas, energias cósmicas etc...

Nesse longo período de pandemia, em que nos foi imposto um autoconhecimento obrigatório, devido ao grande período de isolamento, essa quietude de quem tem salário ou recursos financeiros garantidos, já que para alguns foi, além das dificuldades gerais dessa tragédia, um desafio quase intransponível: o de simplesmente sobreviver fisicamente. Se alguns tiveram que vencer, sobretudo, desafios mentais, outros penaram para sobreviver a estes e, também, outros abismos mais "concretos".

Ontem vi na página de internet do amigo Nirton Venâncio esses versos (acompanha a bela foto "Candangos", de Mario Fontenele) do poema "A ilusão do migrante", do livro póstumo "Farewell", de 1996, de Carlos Drummond de Andrade:

"Quando vim, se é que vim / de algum para outro lugar, / o mundo girava, alheio / à minha baça pessoa, / e no seu giro entrevi / que não se vai nem se volta / de sítio algum a nenhum."... E fiquei matutando que só a arte nos joga na cara essas perguntas fundamentais, e saltei para a questão inevitável da maior dificuldade de quem não tem nem fiapos de artes para sobreviver a esses tempos ásperos... A quem não tem, também (cada qual com suas fugas e buscas), migalhas de crenças, no que seja, em quem seja.

Os versos do poeta de Itabira me lançaram num voo cego e surdo em direção a outro autor que sempre me acode com suas belezas e inquietações: "O berço balança pairando sobre um abismo, e o senso comum nos diz que nossa existência não passa de uma breve fenda de luz entre duas eternidades de trevas. Embora as duas sejam gêmeas idênticas, o homem, em geral encara com mais calma o abismo pré-natal do que aquele a que se destina (a cerca de quatro mil e quinhentas pulsações cardíacas por hora)." Quando, enquanto leio, vejo o marca página do livro ("A pessoa em questão", tradução do Sérgio Flaksman, de Speak, Memory - Fala, Memória - de Nabokov), pois bem, esse papelote amarelecido que marca a sentença me lembra novamente dessa sinuca de bico, com seus cantos carcomidos pela ferrugem dos anos, traz o nome e a logomarca singela da livraria Café com Letras, que funcionava na Avenida Dom Luis, que desapareceu e jaz esquecida junto com sua querida dona Marta, uma das primeiras vítimas da dengue no Ceará.

E todas essas confusas associações de ideias que puxam outras vão me (nos ou nus) empurrando para um abismo de pensamentos arrastados, tristes... Sem fundo nem fim: quando me recordo, para me salvar de mais uma armadilha, do socorro dos versos de "Marcha", de Cecilia Meireles: "Também não pretendo nada / senão ir andando à toa, / como um número que se arma / e em seguida se esboroa, / - e cair no mesmo poço / de inércia e de esquecimento, / onde o fim do tempo soma / pedras, águas, pensamento".

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