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Na Aldeia de Murará
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Na Aldeia de Murará

Tipo Crônica

(Para Marcos Gomes, que me contou essa história.)

Se qualquer louco, pedinte ou simples errante de repente aparecesse no vilarejo era logo tido como mais um que misteriosamente chegava da longínqua aldeia de Murará. E não adiantava encompridar conversa com nenhum deles, pois de suas bocas nada mais saía que o estranho nome do lugar, que variava até o infinito na tentativa de se expressar: Mará-Marará-Murerá-Melrará; mas onde... para que lado... o que se fazia por lá...? - Nada, nadinha adiantava perguntar.

Quando os primeiros madrugadores abriam suas portas e caminhavam, sonolentos e trôpegos, para urinar em meio ao terreiro, já avistavam os passantes de sempre apontarem na derradeira curva da estrada, bem longe ainda; dali a pouco começavam a distinguir na penumbra o manquitolar do pedinte Albino, escorando a perna fina-fininha no suporte da muleta - iniciava bem cedinho a peregrinação por todas as nossas ruas, sempre numa sequência diferente. Não muito distante tateava o cego Alceu com sua bengala de jequitibá, o passo miúdo margeava o caminho, a cabeça virada para o nascente buscando a impossível claridade.

Nunca deixavam escapar de onde vinham, em que misterioso lugar passavam a noite - as perguntas eram desviadas para outras conversas: e sempre escapavam de fininho se o curioso insistia: Muulará-Málará-Milurá. Raríssimas vezes se ouviu notícias do paradeiro de algum deles: mal o sol se punha, lá iam se recolhendo ao fundo da mata através da velha estrada poeirenta. Quase sempre os meninos os seguiam aos gritos, fazendo algazarra e repetindo apelidos.

— "Albino da perna fina, Albino da..."

Os gritos ecoavam em outras bocas, até que chegavam na curva onde ninguém se arriscava a seguir adiante. O ceguinho era sempre o último, e quando ele sumia na estrada as crianças há muito dormiam.

A única notícia ouvida até hoje dava conta de que pernoitavam na aldeia de Murará, onde nunca nenhum dos habitantes do vilarejo tinha botado os pés: nem os mais velhos davam notícias, com precisão, de onde se localizava. E nossos avós repetiam sempre a mesma história, de que antigamente, entre os sovacos de serra - para além do grotão -, havia uma aldeia perdida sob a garrancheira da mata... e que, quando um sujeito sumia na sexta-feira e só aparecia na segunda, chegando enfadado, os olhos vermelhos, sapatos nas mãos, o rosto pálido e banhado em suor - se dizia apenas ter estado em Murará-Marlará-Milhará: mais nada escapava de sua boca, a não ser o mesmíssimo sorriso malicioso e triste... aumentando em muito a curiosidade dos nossos, que (invejosos e sem jeito) esperavam um dia também descobrir o caminho.

E, se até hoje não se sabe o paradeiro dos muitos vendedores, pedintes e errantes que empestam nossas ruas durante o ano inteirinho, não tem sido por falta de esforços. A curiosidade nos move, mas o medo nos impede de segui-los além da última curva da estrada, lá onde - dizem - os caminhos não mais se cruzam, e quem seguir por um deles se arrisca a ficar eternamente perdido...

Foto do Pedro Salgueiro

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