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Sapateiros no céu
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Sapateiros no céu

Tipo Crônica

"Aos Mestres Zé Manela e Anastácio Cícero"

Meu pai era um pequeno sapateiro - um lambe-sola, como se dizia (não sem um misto de ternura e ironia) - que aprendeu tardiamente seu ofício. Fora agricultor, pequeno comerciante, prático de farmácia (ou melhor, aplicador de injeções): sempre inquieto e curioso em aprender "de tudo um pouco", vivia pesquisando sobre plantas enxertadas, sistemas domésticos de irrigação (certa vez criou um banheiro móvel feito com latas de óleo para aguar, enquanto tomávamos banho, as plantas do quintal).

Depois de fracassar em quase tudo o que se meteu a fazer, aproveitou a carona dos muitos caminhões pau-de-arara que iam, destemidos, construir Brasília. Por lá descobriu, depois de penar muito cortando o chão vermelho do Planalto Central, a profissão de sapateiro, pois se achegou a um mestre que remendava botas como auxiliar, aproveitando para aprender a profissão que lhe daria sustento pelo resto da vida, ao mesmo tempo em que fugia da poeira encarnada e calos que destruíam suas finas mãos.

Ao retornar pro Sertão de Tamboril, alugou um ponto no Centro e fez ele mesmo uma mesa baixa e larga que foi sua companheira por muitas décadas, mas como não dominava ainda o ofício se aproximou de alguns mestres artesãos da sola e da vaqueta que viviam praticando a profissão com dificuldades, sem pontos (a maioria trabalhava na sala da frente de sua própria residência); com alguns fez parcerias, incentivou, pediu auxílio e ajudou (já que tinha mais iniciativa comercial, apesar do histórico de fracassos): se precisava trabalhar com sola chamava o Negro Velho Zebu (que trabalhava sem olhar para as mãos e molhava a faca com cachaça), caso o serviço fosse mais fino e necessitasse maior habilidade convocava o mestre Anastácio Cícero (que também desempenhava a função difícil e nobre de juiz de futebol da cidade), porém se aparecesse encomenda de selas, cilhas e arreios para animais se socorria do vizinho e amigo Zé Manela.

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Mas morreu cedo, antes dos 60 anos, deixando sua caderneta cheia de encomendas, anotações de prestações dos fregueses, dois pares de "currulepo" prontas, o pequeno estoque de materiais, latas de cola e formas de madeira. O pé de ferro acabou em minha estante, a torquesa resgatei de um familiar, as muitas formas de ferro e madeira foram distribuídas com os irmãos de profissão. Dele restou quase nada, uma lembrança doce-amarga que sentimos sempre que o cheiro da sola e da cola nos invade narinas em alguma esquina onde tenha sobrevivido uma rara oficina de consertos.

Sempre que retornava a minha terra fazia peregrinações à casa de seu Anastácio Cícero e à oficina do mestre Zé Manela, das visitas restaram algumas fotos e lembranças de conversas que descambavam invariavelmente para a amizade deles com meu saudoso pai: mas esse cruel 2021 foi terrível com os últimos sapateiros de minha terrinha, levou primeiro seu Zé Manela e na última semana o amigo Anastácio Cícero.

Soube através de mensagem da minha ex-professora e amiga Graças Farias: "Amigo, hoje é dia de festa dos sapateiros de Tamboril no Céu, pois se foram os dois últimos exemplares restantes".

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