Logo O POVO+
Noturnos
Foto de Pedro Salgueiro
clique para exibir bio do colunista

Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Noturnos

Tipo Opinião

Foi no tempo em que frequentar bares era quase uma atividade secreta. O mistério começava bem antes das noites de sexta-feira. No início da semana vagávamos pelas ruas escuras do cais - e nunca queríamos procurar, porém nos abordavam na penumbra, passavam o bilhete de entrada com gestos vagos ou o deixavam preso às correntes das embarcações. No pequeno papel amarrotado não vinha referência nenhuma de local e horário, mas quase que por milagre sempre acertávamos. Trazia apenas uma senha, número e letra, que nos indicava a posição da mesa - também não pagávamos adiantado o ingresso, vinha incluído na conta no final da noite.

Da penúltima vez tive bastante sorte, peguei mesa excelente bem ao lado do palco: coisa que nunca me preocupou, visto ser eu discreto e ter preferência pelas últimas filas, de onde dominamos o ambiente e jamais somos notados. Sentei de costas para a plateia, por pura timidez, se bem que poderia ter ficado de frente e não teria reconhecido ninguém: a iluminação, pouquíssima, fora disposta a deixar sempre os rostos na penumbra; quando muito dava para distinguir mãos segurando copos, ou depositando cigarrilhas em cinzeiros, e com estes mínimos detalhes adivinhávamos os companheiros de noitada. Basta dizer que nunca fui abordado por ninguém, e até a bebida parecia ser a mesma para todos.

Idêntica também era a solidão, como se estivéssemos em casa - distinguia-se talvez o odor acre da bebida, a fumaça dos cigarros, certo tilintar de copos - uma solidão acompanhada, pessoas que em vez de nos tirar do vazio, aumentavam-no. Como a de alguns bandidos, que fogem dos subúrbios mais tristes para se esconder na multidão dos shoppings; ou de certos amantes que preferem as praças movimentadas à discritude de hotéis quase desertos.

Também eu tinha mil motivos para não desejar ser reconhecido, apesar de haver chegado a pouco mais de um mês à cidade - buscava novas pousadas a cada semana, mesmo assim sabia ser impossível continuar aquela desajustada fuga.

O pianista agora tocava uma balada conhecidíssima em minha infância, repetia o refrão a valer. Passei a acompanhar seus gestos longos e serenos, como se absorvido totalmente pela música. Emborcado sobre o piano, ele revivia todas as minhas angústias de juventude - música a música ia revivendo a minha vida todinha, precisamente ano a ano de minha cansada existência. Desviei um pouco o olhar para um palco lateral improvisado entre as mesas. Os dançantes desmanchavam-se entre as mudanças de ritmos. De tão absorvido nos passos, esquecia-me do pianista que agora tocava claramente pra mim, a cada apresentação virava discretamente sua cabeça disforme, cumprimentando-me, como se esperasse apenas meu aplauso.

Foto do Pedro Salgueiro

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?