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O velho poeta
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

O velho poeta

Tipo Crônica

O velho poeta se desacostumou dos holofotes, pois já fora relativamente famoso lá pela década de 1970, quando - dizem os camaradas de sua geração - chegou a lotar o Estoril numa tarde e noite de autógrafos. Nessa época acreditava em revoluções, artes e outras coisas invisíveis.

Mas como em tudo na vida, foi cansando desses "babados" (gostava de dizer) e restando mais em casa com a família. Passou a ler mais e com mais variedade de temas; se inteirou de criminologia, psicologia freudiana, números quânticos e mapas astrais. Passou a cultivar um cavanhaque grisalho e, quase, uma aversão por conversas fúteis. A tudo dava um "ar" de gravidade, de inevitável seriedade... intercalando frases enigmáticas em meio a conversas desencontradas... depois das quais, usando um charme todo seu, cofiava o bigodinho fino e sapecava para fechar a sua já famosa frase: "Tudo é mistério!".

O ex-poeta da geração mimeógrafo, que não usava cuecas e defendia o sexo livre, virara, na verdade, um senhorzinho quase conservador; digo "quase" por lhe salvarem as excentricidades em frente às visitas, as maledicências em frente à família, a deselegância em frente a todos. Sua filha recém-egressa na universidade evita trazer em casa as amigas, pois sabe que ele lhe dará bastante trabalho no desenrolar da tarde de conversas longas, monótonas: seu monólogo se estenderá pelas civilizações asteca, inca e maia, mas não deixará de satisfazer a curiosidade forçada das moças que riem sem jeito e estendem a mão para mais um carinho despretensioso na leitura das linhas da vida.

Na solidão do seu quarto, à noite, enquanto a "patroa" vê a última novela, o ex-futuro Prêmio Nobel de Literatura chafurda uma surrada edição de Ulisses de James Joyce, recordando de quando, na fila do cinema de arte, fazia charme e entediava a todos lendo longos trechos em inglês com sotaque irlandês. Suas atitudes excêntricas já faziam parte de um folclore pessoal que cultivava desde bem jovem, afinal era de uma geração não só de intenções, mas acima de tudo de atitudes.

O que restava, pois, ao poeta antigo de mãozinhas finas era fantasiar sua obra prima, aquela que lhe dará, certamente, fama póstuma e definitiva; acreditava piamente nessa miragem... Anotava freneticamente fragmentos de narrativas medievais, inovava com paráfrases de longas digressões de Euclides da Cunha em seus diários de campo, tentava imitar a linguagem coloquial dos adolescentes pródigos e geniais de Salinger, pegava até pitadas da ironia quase inglesa do velho bruxo do Cosme Velho.

Mas a malvada das gentes foi mais rápida e o levou silenciosamente numa tarde em que todos, menos o triste poeta, tinham saído de casa para resolver alguma pendência cotidiana. Ele se foi sem alardes, deixando a TV ligada na Sessão da Tarde, que reprisava pela milésima vez A Lagoa Azul (ele fazia questão de dizer que vira pelo menos cem vezes, olhando pra tela apenas nos instantes dos famosos mergulhos de Brooke Shields), em cima do birô desarrumado a tralha de papeis numerados com caneta vermelha, que fui colocado em arrumação pela filha num desses sacos pretos de lixo, para apenas ser lembrado na tarde, meses depois do sepultamento, em que tragicamente alimentou uma fogueirinha no fundo do quintal.

Foto do Pedro Salgueiro

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