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O Junior da casa
Foto de Pedro Salgueiro
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

O Junior da casa

Tipo Crônica

Foi no tempo em que eu vivia procurando casa pra comprar, não que eu tivesse muita grana ou quisesse ganhar dinheiro com revenda de imóveis; mas simplesmente vendia a residência na qual morava para arriscar viver noutro bairro diferente, o mais distante possível do anterior. Era uma coisa meio maluca, que geralmente deixava também louco quem convivia comigo. Com o tempo virou um hábito, um troço assim meio automático, nem lembro mais que prazer me dava... Ou melhor, lembro-me de alguns prazeres: conhecer gente nova, diferente (algumas amizades fiz dessas visitas estranhas, algumas perduram até hoje), percorrer bairros desconhecidos, descobrindo suas rotinas, belezas, medos...

Confesso que havia uma dose boa de voyeurismo sem conotação sexual (pelo menos consciente, claro), de curiosidade pela vida alheia, coisa perfeitamente "normal" num pretenso escritor, ou algo do tipo; e dessa "tara" de mudar de lugar um dia cheguei à conclusão de que era mais insatisfação comigo mesmo que pelos lugares em que habitava e queria injustificavelmente abandonar.

E, nesses mais de 40 anos de fugas pela cidade e suas veredas, muitas cenas e pessoas ficaram gravadas na mente - cheguei até um dia a pensar em registrá-las num certo "inventário de andanças", de caminhos percorridos nessa sonsa loirinha destrambelhada pelo sol, porém vou calando-me por preguiça de recordar... Muito embora de vez em quando no meio de um assunto uma história me venha quase automática puxada pelo mote da conversa.

Como aquela que me ocorreu no dia em que marquei visita com um corretor para ir vez uma casa bem antiga na Rua dona Leopoldina, dessas de mureta ainda baixa, árvores ornamentais no jardim e placa ovalada com o nome da família na parede da frente. Lembro que cheguei bem antes da corretor... Uma senhorinha ingenuamente me deixou entrar, entretendo-se logo em segredos com a minha companheira. Papo vai, pergunta vem, foi logo nos apresentando a todas suas irmãs, uma imensa fileira de velhinhas, a mais nova já curvada, a mais velha já prostrada numa cama hospitalar improvisada na imensa cozinha. Uma foi fazer prontamente o café, a "caçula" foi mostrar o grande quintal com fruteiras e até um canil desativado; e que surpresas fomos descobrindo naquela imensa casa habitada por mulheres que pareciam de séculos passados em suas rugas, roupas e costumes.

O corretor felizmente se atrasou o suficiente para que elas mesmas fossem nos mostrar os diversos cômodos, menos um que a mais falante das velhinhas não cansava de nos informar que somente não nos mostrava porque era o "quarto do Junior"; retruquei que não se preocupasse, devia ser igual aos outros, ficasse tranquila... Mas logo em seguida, parecendo esquecer, ela lamentava não puder nos mostrar o quarto do que parecia ser o irmão mais novo ou mesmo sobrinho temporão. Tomamos café, suco de acerola e já nos ofereciam novamente café quando o corretor atrasado finalmente chegou. Desculpou-se conosco e com as senhorinhas, suando muito em seu corpanzil resfolegante.

Porém o que mais nos comoveu foi quando (já nos despedíamos prometendo nova visita com proposta de compra) a única porta do quarto no qual não entramos se abriu num rangido longo e dela surgiu um senhorzinho de seus quase 70 anos, cabelos compridos desgrenhados e completamente brancos, de cueca samba-canção de seda com bolinhas, passou como um zumbi na direção do banheiro, e nos olhou sem nos ver, como se fôssemos os verdadeiros fantasmas daquela casa antiga.

 

Foto do Pedro Salgueiro

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