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Ari no Tempo da Lamparina
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Ari no Tempo da Lamparina

Arievaldo Vianna não era apenas um homem, mas um sonho. 

Para alguns, um quixote, um quaresma, uma sherazade de calças, um fabulador de voz grave e declamante, com seu colete de couro a berrar suas histórias em palcos naturais das calçadas, das praças, dos postes, numa delirante genialidade quase beirando à dulcíssima loucura, como alguns outros com quem dividia a sua mala de romances e baú de gaiatices.

"No ano sessenta e sete/Do outro século passado/Nasci naquele recanto/E fui por Deus inspirado/A beber daquela fonte/Perto do reino encantado."

E bebia e se banhava, de quase se afogar, dessa fonte de trovadores, tocadores, violeiros, sanfoneiros, bumbas-meus-bois e, claro, à lamparina, na rede ou em alpendres, ou nas manhãs azuis, sobre o tapete da bagaceira de engenho, em meio à capoeira, à voz alta, dos folhetins de cordéis, "sua leitura de primeira hora".

O bravo menino sertanejo do sítio Ouro Preto, alheio às necessidades que a vida lhe trouxe para fazer-se forte, crescia assim, imerso entre a roça e o mundo fantástico: beijocador de princesas, amigo de reis, escalando muralhas de castelos, desafiando dragões, assistindo a gargalhar muito as pelejas de demônios com cangaceiros.

Quem diria que essa tripinha de gente "desasnada" pela leitura da vó Alzira se criaria poeta, ilustrador, fanzineiro, radialista, publicitário, xilogravurista, colecionista, historiador, biógrafo, capista, editor, pitaqueiro, amigo de todos... e alguém a quem as letras brasileiras deveriam tanto?

Quando nos encontrávamos, era uma grande alegria, e se eu não pedisse arrego, não me deixava ir. Num galope à beira-mar atropelava uma história com uma pesquisa, uma leitura com uma piada, uma reclamação com uma proposta editorial que iria nos enriquecer a todos... Mesmo quando depois me confirmava: "Minha mulher chegou à triste conclusão de que eu não sei vender a minha arte, não nasci para ganhar dinheiro. As pessoas me procuram e eu sempre cobro muito abaixo do que deveria".

Meses mais novo do que eu, tinha no falar - e eu o admirava por isso - uma extrema autoridade, uma altivez, mas uma autoridade legítima, uma altivez não pedante, de quem sabe e que transmite esse saber, não o ocultando sovinamente como se fosse um privilégio, uma dádiva divinal. Estive com ele em diversas ocasiões distintas e NUNCA o vi se gabar de nenhum dos prêmios que recebeu, das inúmeras publicações e dos livros que vendia em editoras nacionais, de entrevistas de toda parte do país das quais era convidado. Sabia o amigo Arievaldo, por ser ele um dos grandes, que os prêmios são apenas reflexos e consequências daquilo que fazemos e do que realmente nos importa. Para os fracos e os pequenos, tais desnecessários reconhecimentos podem se tornar armadilhas de espírito. Arievaldo não precisava deles. Era um artista!

Militava na educação, na leitura, nas artes populares e sertanejas. No palco, falava desenvolto, cheio até a tampa de histórias para contar. Criativo, inteligente, impulsivo e impossível.

Dia 30 de maio de 2020, os quase anjos João Grilo, Pedro Malasartes e o Cancão de Fogo, sob a bênção de São Francisco, desceram dos céus em busca do menino grande Ari e o levaram para se assentar ao lado de Patativa, Santaninha, Leandro Gomes de Barros, Alberto Porfírio, Leota e Ribamar Lopes numa conversa que se já era sem fim, agora é que não se acaba no meio desse sereno de estrelas do cordel, a literatura mais genuína e brasileira de nosso Brasil.

Nossa gratidão, irmão Arievaldo, príncipe do cordel cearense.

Foto do Raymundo Netto

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