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Eu que não te amo
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Eu que não te amo

Tipo Crônica

"Como é que eu não te amo, seu, seu, seu... ABESTADO!"

Enfurecida, ela só faltava arrancar os miolos de cabelos todas as vezes que ele, no calor de qualquer ruído sentimental, concluía pesaroso: "É por que você não me ama mais..."

Para uma mulher apaixonada, não existe nada mais abominável do que negar a ela o reconhecimento desse exercício sobre-humano de amar. Então, desconcertada, mudaria completamente o rumo e o tom da conversa, tentando, a todo custo, provar a ele a magnitude de seu amor, o que parecia não ser pouco nem fácil.

Eles se conheceram como enredo de novela. Nem um nem o outro imaginaria que dali lograsse sequer amizade. Ao contrário, criariam maneiras de mudar seus caminhos para se encontrar em suas solidões, desesperanças, afinando-se em seus insucessos e frustrações, de maneira que certo mesmo era tudo dar errado, desde o início. Indiferentes a essa paradoxal e desastrosa constatação, amavam-se.

Logo os amigos passaram a sentir a falta dela, mas sabiam: "Se desapareceu, está de caso novo..." Então, uma noite, ela os encontrou em um bar de karaokê. Ao invés de sua carnavalesca alegria, trazia olheiras impiedosas, testemunhas de uma dor. Queria beber não uma, nem duas, mas todas, para esquecer e afogar o remorso.

Os amigos, lá pelas tantas, sentenciavam: "Você está doida. O que viu nele? Velho, feio, desajeitado, sem graça. Chato que dói. Sozinha estava melhor, sabia?"

Suspirava, buscava forças do fundo do poço, chicoteava o pescoço e cantava aos berros: "Quando digo que deixei de te amar, é porque te amo... Quando eu digo que não quero mais você, é porque eu te quero..." Os amigos e outros clientes faziam coro, lançando os braços num ritmo de auditório de programa de TV, assistindo às lágrimas que desprendiam enegrecidas daqueles olhos grandes e ciliosos bem apertados, decerto para enxergar melhor o autor daquele drama.

Noutro dia, tomada por uma noitada de conselhos e pitacos, partia para uma nova discussão de relacionamento. Começava com a voz serena, analisada: "Não podemos ficar mais assim, amor. Assim eu não quero. Você tem que mudar, senão não dá, não aguento." Após algumas horas de exposição de argumentos, ele cala o silêncio e se manifesta: "Você só diz isso porque não me ama mais." Ela endoidece, dá-lhe uns beliscões e sai do carro, batendo a porta furiosa e decidida a não vê-lo nunca mais. Desta vez, cumpre. Durante meses, nenhuma notícia, nenhuma inusitada serenata de perdão e chocolates. Desiludida, encharcou o travesseiro por noites consecutivas, numa inconsolável abstinência de quase morte.

Mas na vida nada se perde; tudo se transforma. E aquela saudade, tão singela quanto um poema juvenil, se converteu em ódio feroz, cosido pelo capricho de recuperar a autoestima e a sua afamada imagem perante seus solitários amigos.

Anos depois, numa manhã de temporal, ela guiava seu carro quando o reconheceu caminhando na rua. Veio-lhe o desejo irreprimível de passar por cima. Acabaria de vez com aquele sofrimento desigual. Não teve coragem. Então, desviou a direção e passou raspando, jogando-se em alta velocidade sobre uma poça de lama, banhando-o por completo. Pelo retrovisor, enquanto assistia gargalhante àquela figura estática e molhada, não imaginava que, naquele mesmo momento, ele sorria triunfante: "E não é que ela ainda me ama?"

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