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Amor Perfeito
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Amor Perfeito

Tipo Crônica

Era louco por sogras... e essa penosa constatação lhe veio justamente quando ao último desenlace amoroso: não sentia falta da namorada tanto quanto de sua mãe. O mais estranho é que a vira apenas poucas vezes e nelas mal se falaram. Isto porque a ex-namorada evitava aproximação entre eles e a condição imposta para isso acontecer era amargamente burocrática: "Só se noivassem!"

Ele, que era mais velho, teve outros relacionamentos. As sogras anteriores, quando percebiam o mínimo abalo no relacionamento do casal, interferiam, buscavam contornar e, quando fracassada a investida, até deixavam de falar com suas filhas: "Como pode abrir mão de um homem assim? Ficou louca? Homem bom desse não tem mais, não, hein?"

Nisso, mesmo após o fim do namoro, perdia-se a namorada, mas a sogra, esta, assim o seria para sempre!

Ainda durante o namoro, quase clandestino, dona Dedé - era o seu nome - deu entrada no hospital. Ele, diversas vezes e com muito jeito, se ofereceu a ir visitá-la, levar algum mimo ou mesmo se postar ali para prestar qualquer assistência, mas a namorada sempre o dispensava: "Se precisar, eu digo". Ele insistia; ela recusava. Ficava arrasado, pensava na dona Dedé a noite inteira, ligava cedo para saber notícias, o que o médico disse, que remédio tomara, o diabo a quatro.

Outras vezes, quando a namorada desabafava sobre as discussões com a mãe, ele por fim tomava o partido da segunda. Acreditava tanto na sua santidade, capaz de jurar que seria ela até virgem.

Quando recebeu, pela namorada, um presente de dona Dedé, extasiou-se, acreditando ser possível a realização de seu sonho: se imaginava ao lado da sogra, coladinhos no sofá, ressuscitando esquecidos álbuns de fotografias, assistindo ao especial do Roberto Carlos, cantando em dueto os detalhes de dores eternas de cotovelo, debatendo novelas, estirando à cozinha intermináveis histórias de seu acervo de passados, suas crenças, sonhos e amores, ao sabor do cafezinho e de pães de queijo. Assim, suspirava uma dor profunda e não perdoava a filha ingrata que, egoisticamente, impedia essa felicidade.

Não, isso não poderia terminar assim...

Meses depois, arrastava um carrinho de compras de supermercado quando a viu, ali, sozinha no mesmo corredor, escolhendo potes de doces. Em silêncio, desmanchou o queixo, lentamente, sobre os braços cruzados no cabo pegador de seu carrinho, animando um olhar enamorado de pôr de sol. Guardava ali, em seu fragilíssimo relicário, a imagem robusta e vivida daquela mulher.

Dona Dedé - como toda mulher tem um radar apurado - sentiu-se observada e desviando o olhar das prateleiras percebeu aquele admirador e, mais, o reconheceu: "Você?"

Alheio ao nariz torcido e olhar desdenhoso de sua admirada - decerto tomara as dores de sua filha -, ele aproximou-se, resoluto e saudoso, tomando-lhe de assalto a boca com um beijo tão perfeito quanto um amor jamais consumado.

Foto do Raymundo Netto

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