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Sonho que não se Sonha Só*
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Sonho que não se Sonha Só*

Tipo Crônica

Ela passa ao lado de um botequim de mercado, um daqueles cheirando à gordura, a caldo de cana e a suor farto de carregadores, agricultores, caminhoneiros. Vinha com sede, muita sede. Cria coragem, entra e pede um copo de água.

Diante de olhares lascivos ao seu colo branco de estudante, toma à mão o copo americano, limpa o bordo com a ponta dos dedos compridos e o leva à boca vermelha. Enquanto bebe, vê a imagem dele no fundo do copo. A imagem também a reconhece e a abraça com saudade plena. Juntos, de mãos dadas, saem do botequim, sem se importar com o mundo ao redor, mesmo se havia mundo, e caminham se expressando apenas por sentimentos.

Assim, atravessam a cidade. As casas e edifícios se curvam ao seu rastro, deitando telhas e segredos nas ruas e por cima de seus moradores de calçada. No meio do caminho, um portal os devora. Lá dentro, descobrem o teto marchetado em cristais coloridos e espelhados. Olhando para cima, eles se veem, se encontram e se encantam de novo. Ele, subitamente, sente sua mão reclamar uma dor. Ela se preocupa. Toma a mão dele e a coloca entre as suas: "Vou tirar essa dor de você... para sempre". Então, como se o mundo fosse de vidro e o tempo coubesse num único ponteiro, eles trocam olhares, se emprestam e se amam.

Depois, ela diz ter que ir embora, não lembra o porquê, mas se fazia hora: "Eu vou esquecer você". Pede um táxi, que logo chega, todo envolto em neon. Ela acena um beijo para o amante. É quando percebe o rosto embaçado, como uma digital. Entra e senta na poltrona de trás, pois aquela ao lado do motorista está ocupada por uma pessoa morta, coberta por um lençol, com quem o motorista conversa.

No meio do caminho, sem lhe perguntar, o táxi toma outro destino. Ela chama pelo motorista, mas ele só tem ouvidos para o morto. Param em uma travessa e o taxista começa a gritar com ela: "Saia do meu carro! Saia, vamos, e não me procure nunca mais!".

Apavorada, desce e escorre pela primeira porta. Ali, encontra quatro mulheres negras e mudas, cobertas de sal, expostas em uma vitrine escura. Por detrás dela, surge um homem, arranca a sua roupa, cobre de sal o seu corpo e a coloca na vitrine junto com as outras.

Dias-há, o silêncio e o incômodo de uma luz intensa e amarela sobre elas. Então, não se lembra como nem quando, quebram o vidro e todas saem correndo confusas e peladas pelas ruas desertas.

Ela chega a um hotel, sendo recebida pela gerente a falar por um idioma estranho - que mais parecia desenho - a recender no ar. A anfitriã pega-lhe pela mão, a deita em uma banheira de louça transbordando lágrimas, esponja seu corpo demoradamente, penteia as ondas de seus cabelos e a veste um robe de celofane revestido de estrelas. Ela, quase adormecida, fita e pergunta ao espelho: "E ele?" - "Ainda está aqui, em seu quarto". - Seu coração distraído exulta: "Preciso vê-lo agora!".

Sem sentir o chão em que pisa, acompanha a gerente por desvãos escuros, úmidos e cheio de escadas. Nas paredes, o papel ressoa o som de asas coloridas por borboletas. Entretanto, à porta do aposento, enquanto a mulher bate, ela prevê: "Não é ele quem está por trás dessa porta, mas a esposa dele. É ela!". Começa a chorar... e a rir... a puxar os cabelos por trás do pescoço comprido. Sente uma intensa dor nos olhos e esfrega-os. Eles descem pelo dorso de suas mãos e ela se vê completamente cega.

Tem sede, pede um copo de água. Olha para o fundo e não vê mais nada: "Ela o esqueceu? Mas se o esqueceu, por que ainda de tanta sede?"

Sai do botequim e traz a imagem do morto envolto em lençol pelo resto de seus dias.

(*) escrito a partir de uma narração de sonho que ouvi.

Foto do Raymundo Netto

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