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A Rede
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

A Rede

Tipo Crônica

Cansado de ouvir os reclamos da mulher todos os dias à beira do fogão, Zé Panapanã, que acabava de chegar da lida na roça, ainda salgado em suor e com as pernas “à milanesa”, largou a enxada e mergulhou na primeira rede que encontrou no alpendre.

Quando pronto o almoço, não se buliu. Nem quando a mulher, insistente, sacudia o punho daquela rede: “Tá morto, Zé? Ôxe, nem pra comer se mexe? Avia!” E nada.

Poderia ser birra, o Zé era teimoso e ao mesmo tempo não tinha ambições, nem as pequenas, mais queria o sossego do que tudo no mundo. Dali não sairia, nem para comer, para ir ao banheiro, pitar seu cigarrinho ou dormir.

A mulher se preocupou, mas achava que o turrão não resistiria à frieza cortante da noite. Porém, ao acordar, ela o encontrou ainda mais embiocado, não se vendo nem uma brechinha do homem na rede: “Vai trabalhar hoje, não, preguiçoso? Aqui não tem café pra gente dorminhoca, viu?” Não adiantava. Por mais que Solange berrasse às franjas da rede, o Zé não dava um pio. Dias depois ela decidiu consultar o farmacêutico da cidade que, na falta de outro doutor, poderia ter com o marido: “Tá custando dentro da tipoia, seu Augusto. Não levanta pra nada, nem pra comer, nem pras necessidades. Deve de tá doente... mas não fala nada...”
O farmacêutico estranhou a história e, por curiosidade, descambou a visita.

Chegou batendo sonoras palmas no batente da casa, como se não soubesse estar logo ali, recolhido na rede, o marido de Solange.

Arrastou um tamborete, tentou puxar conversa, sem sucesso. Perguntou se sentia dor, se havia diarreia, alguma anemia, dificuldade de respiração. Com esforço, vez ou outra ouvia um sussurro, uma espécie de “deixe estar” ou coisa parecida. Puxava o pano da rede tentando abri-la para examiná-lo e não conseguia. Já irritado, porém percebendo a aflição da mulher, receitou algumas mezinhas: “Deve ser somente alguma verminose associada à cisma mesmo. Paciência.”

Todavia, o certo é que nem Solange conseguia que o Zé tomasse qualquer coisa, como nem aqueles poucos sussurros se ouviam mais. Ela apelaria, então, ao jovem pároco local. Ele, de cara, denunciava a ausência divina no coração daquele homem que, inclusive, nunca pisara a soleira da igreja e não cumpria sequer com os seus sacramentos.

Em uma primeira visita, tentou extrair, inutilmente, uma tal confissão. Depois, clamando aos surdos céus, o provocou a levantar-se dali, ameaçando-o até de excomunhão. Nada! “Está endemoninhado, só pode. Contra as forças do Todo-Poderoso ninguém pode, dona Solange. E como deixar de atender a uma esposa tão amável, caridosa e temente a Deus como a senhora? Só endemoninhado!” E abraçava àquela mulher, que nem tinha ideia de que era aquilo tudo, e cuja face pousava agora menos inocentemente na sacra batina quase tão cerrada quanto a rede do Zé.

No domingo, uma romaria se quedava em torno da encolhida rede de Zé Panapanã. Dezenas de fiéis da paróquia, empunhando missais, velas de todos os calibres, terços e rosários, cantavam hinos e rezavam pela cura do marido de Solange, que já trazia ares de viúva, mas uma viúva bem fornida, disposta, aparentemente melhor do que antes da crise, sempre ao lado do padre, cuja oratória – confessava – lhe causava um certo frenesi.

Foi ali, naquele instante divinal, que alguém apontou de joelhos para a rede que se abria lentamente. Todos, boquiabertos, se abraçando ou fazendo o sinal da cruz, testemunharam sair da fresta aberta da rede uma borboleta cujas asas batiam incessantes, carregando a criaturinha para onde avermelhava o horizonte e para longe daqueles barulhosos vizinhos.

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