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Redenção
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Redenção

Gedeão incomodava-se. Passasse à calçada, a vizinhança logo lhe apontava olhos censurosos. Era um desgraçado, sabiam mais do que ele próprio. Sabiam sempre mais, de não entender como não haveria de saber nada. Pois sim, a sua mulher o traía às ventas e ele nada! Como poderia?

Já havia de telefonemas anônimos. Bilhetes de solidária maldade lhe chegavam. Os colegas e mesmo os familiares mais próximos, com vexame, insinuavam desconfianças... Era de tão claro, mas Gedeão parecia receber tudo com a naturalidade de um Jó, incompreensível ao geral pensamento humano e, ademais, masculino.

Diante da porta da casa, torcendo a chave, a curiosidade de uma rua despontava aos ouvidos: haveria ali outro alguém? seria daquele dia a desforra? falaria à sonsa da mulher as verdades? surraria aquela vagabunda? acabaria dali, de vez, a pouca vergonha?

O silêncio frustrante de um nada acontecia.

Naquele dia, entretanto, após minutos, saía ela, a esposa jovem e imperdoavelmente linda, pela mesma calçada, acompanhada de estranho. A lágrima descia única e atrevida à face, a luzir do suor vertido no calor da hora. O homem ao lado nem não tinha cor. Fosse outra, dignaria vaia, mas ela, não, era diferente. Temiam-na.

No vento de sua passagem, correram todos à janela da casa. Gedeão, magro ao paletó, cruzava os dedos nos cabelos da cabeça reclinada. "O desespero corroía o peito", pensavam todos a suspirarem dós da sua inocência. Homem estudado, embora simples e apaixonado, trouxera aquela moça inda adolescente, virgem parecia, do interior, mal sabendo as palavras de boca. Deu-lhe nome, casa, comida. E agora, era de pagar esse preço. Por tanto a enganar olhos e ouvidos, a vadia aproveitou-se.

Como tudo na vida, menos na morte, o tempo passou. Gedeão, acolhido com disfarce generoso pela vizinhança, encontrou breve outra mulher. Esta, filha única da vizinha, a mais cruel algoz de sua outrora companheira. Via na filha a redenção daquele corno, pois nela o exemplo quase litúrgico de virtude e fidelidade.

Gedeão casara assim em festa de rua. Nunca mais que ficara só. A sogra, entretanto, não deixava o casal esquecer a outra. Sempre a relembrar de suas imperfeições e a ostentar a compensação na excelente escolha a remir o seu passado.

Foi-se a novidade. Gedeão atravessava a calçada, incomodado. Era de um encabulo só. Olhos demais, palavras demais, amigos demais e algo mais lhe pedia a vida. A esposa já percebia. Acolhendo-o em seus braços, buscava chegar à sua dor, lhe preencher o vazio de seu coração choroso.

E foi numa noite que Gedeão abriu, com sorriso, a porta da alcova, e apresentou à mulher um homem sem cor, e ela, compreensiva em seu sublime e devoto amor, abriu os braços, como numa cruz, para o seu mundo.

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