Logo O POVO+
Boca de Beijar
Foto de Raymundo Netto
clique para exibir bio do colunista

Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Boca de Beijar

Tipo Opinião

Era de uma loucura por beijo. Fazia tudo, de tudo, por um beijo. Não lhes negassem um beijo por nada. Antes a morte! Embora, entre últimos suspiros, não abrisse mão, digo, a boca, do derradeiro beijo.

Fosse uma mocinha inexperta, pregada à soleira dos castos anos, a avistar ao longe as guirlandas de uma ingênua paixão, vá lá! Mas ouvir de um homem feito, quarentão, mais vivido e passado do que colarinho de político, o discurso meloso sobre um mero beijo, soava para nós tal qual uma extravagante promiscuidade.

De fato, Nicolau era um homem comum, sem nenhum dote a justificar o aparente sucesso com as mulheres. De novo, apenas aquela devoção à teoria sobre o beijo, que, em alguns momentos, para nosso deleite de mesa de bar, assumia um tom sobrenatural:

- O beijo, meus amigos, não duvidem, é o mais poderoso afrodisíaco que há na Terra. Escolho as mulheres pelo beijo. Entrego-me àquele que me há de ser sempre doce e profundo, pleno, demoroso, longo e largo como uma vida inteira...

Daí, em torno de um Tristão de olhos cerrados, surgia uma aura frouxa, como rósea névoa, a lhe tomar o rosto e o peito, enquanto naqueles lábios subitamente tácitos, eu juro, podíamos sentir a presença do fruto etéreo em sua boca fanaticamente desejada.

Não era segredo para ninguém. Aliás, ele mesmo fazia questão de espalhar a sua tara por bocas. Até as mulheres que, por fado, lhe caiam na conversa, sabiam da sua fama de imodesto e cobiçoso beijador. No começo, foi levado a pagode, mas depois, com o tempo, veio o incômodo da vizinhança. Suas vítimas avolumavam-se dia após dia. O inaceitável é que, após o previsível desenlace, elas sofriam horrores, dignas de uma viuvez de falecido vivo. Maldiziam o desgraçado, choravam às esquinas, mas nunca que jamais o esqueciam. Por toda a região se sabia: "Ai de quem as tivesse depois de Nicolau..."

O único que parecia não se inquietar com isso era o próprio Nicolau, a se passar tão serelepe quanto antes, entregando os beiços sedentos a novas candidatas seduzidas pela experiência idílica de seu beijo vicioso.

Os outros rapazes, num misto de vergonha e incompetência, passaram a hostilizá-lo, assim como os familiares das ex-namoradas. Afinal, lhes parecia inconcebível aquela impudica e inarredável dependência pela boca alheia, o que fez com que o galã se visse obrigado a sair menos às ruas. E, quando o fazia, era um rebuliço: as mães cerravam as janelas dos quartos das moçoilas já inclinadas à tentação, enquanto procuravam, com custo, segurar as demais, ainda por ele encantadas, na busca desesperada de uma calorosa reconciliação.

Numa manhã, o inevitável: "Nicolau foi encontrado morto, provavelmente a pauladas, numa vereda do boqueirão", contou-nos, com descarado alívio, o delegado, pai de uma das moças beijocadas pelo "libertino".

Deste modo, muitas mães também eufóricas ao receberam as "boas novas" abriram as cortinas e as janelas das alcovas de suas filhas que, assim como outras surpresas e honradas mulheres, naquela mesma manhã, despertaram, para o espanto geral, sem bocas.

Foto do Raymundo Netto

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?