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Marca Dor (Parte 2)
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Marca Dor (Parte 2)

Tipo Crônica

E assim, Beatriz encaminhou Fulgêncio à biblioteca, certa de que a sua coleção pessoal não o animaria, mas também ela sofria da necessidade de falar a alguém.

Apesar da pompa do gabinete, seu acervo era modesto. O convidado expressou apatia. O que Beatriz não sabia, porém, é que aquele esnobe e presunçoso, de certa forma, tratava-se de um ignorante. Nada entendia de poemas, de literatura, não acompanhava folhetins, e tinha os livros de sua vasta biblioteca apenas como invólucros caros para seus diletos marcadores de página, estes sim, a seu ver, genuínas obras de arte.

Fulgêncio pôs-se a olhar as fileiras de livros encadernados. Sacava um ou outro da estante. Lia-lhes o dorso com falso interesse, a assentar o pincenê esverdeado ao nariz. A jovem, deslumbrada, aproveitava e punha-se a descrever obra e autor num falatório, sabemos, desperdiçado, recebido com monossilábico desentusiasmo.

Surpreendeu, então, quando o Fulgêncio esbarrou-se na escrivaninha. Nela, quatro ou cinco marcadores de página, coloridos, com detalhes dourados ou de vidro, quase artesanais. Quis saber deles, da sua origem, mais e mais... Ela, interrompida na descrição de Álvares de Azevedo, logo dispensou: "Se o senhor gostou, pode levá-los, eu não uso."

"Não, como não?", absurdou-se, e, mecanicamente tomou o exemplar que a moça tinha nas mãos. "É o que você está lendo agora? O poeta?" Ela sorriu e assentiu com a cabeça. Fulgêncio abriu o pequeno livro numa página marcada e surpreendeu-se: em vez do tradicional marcador, havia uma rosa murcha, descorada, decrépita. Era ela, aquela rosa, o marcador único que orientava e guiava a sua leitura: "Não disse ao senhor que não precisava?" E sorriu, atrevida. "Que songamonga!", pensava afrontado. Não quis ver mais nada, lançou o livro na mesa, colocou os marcadores no bolso. Pediu licença, tinha que beber água, precisava de ar, de qualquer coisa. Não, nem precisava se incomodar, ele mesmo buscaria. Não estava se sentindo nada, nada bem!

Passados alguns minutos e dois ou três copos de vermute, o colecionador começou a delirar. Admitia: nada havia de mais original e singular do que aquela rosa. Um exemplar pálido, amarfanhado, é verdade, mas que viços e frescuras trazia inda em si, a ponto de sobrepujar os demais e de resistir ao seu próprio fim? Na cabeça do velho Fulgêncio os pensamentos rodopiavam em torno da rosa da estudante, quando destemperou-se: aproveitando os clamores de vivas e o estalar de champãs, desatinou pelo corredor em direção ao gabinete. Tomou o livrinho com as duas mãos e, trêmulo, sorriu à rosa como a pedir seu consentimento. Não esperou. Escondeu-o no fraque e retirou-se logo, apanhando o primeiro coche a passar na rua.

Ao passo de casa, estreitava o livro ao peito, chorando de alegria e vergonhas. Haveria de pedir desculpas, sim, pela grosseria da furtiva retirada. Haveria de encontrar também uma forma de buscar reparação àquela mocinha, coitada... Mas depois, só depois.

Chegando à sua biblioteca, acendeu o lampião, largou-se das roupas, arremessou de lado o livrinho de Beatriz, julgando-o não merecedor de tal exclusiva prenda, tão belo e extraordinário exemplar, um cálice amoroso que ora colhia com cuidado e sentia, como virgem, em seus lábios...

Escolheu novo livro, um dos mais raros, e deitou-lhe a rosa na página 89, não percebendo que ferira o papel com um espinho, de onde manaria, por sobre a última estrofe de um poema, um traço indescrito de dor e de sangue..

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