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Nosso mundo de extremos
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

Nosso mundo de extremos

Tipo Opinião
Regina Ribeiro, jornalista (Foto: O POVO)
Foto: O POVO Regina Ribeiro, jornalista

"Viagem a Petrópolis" é um conto de Clarice Lispector, publicado no livro A Legião Estrangeira, cuja personagem central é Mocinha, uma idosa "sequinha" que saiu do Maranhão para viver como empregada doméstica no Rio de Janeiro. No tempo da ficção, Mocinha já não tem serventia. Muito velha, não consegue dar conta de levantar-se cedo, cuidar da casa, fazer a comida, lavar a roupa, lidar com os humores dos patrões, juntar a louça deixada em qualquer lugar, dar conta dos desejos surgidos a qualquer hora e das demandas de sol a sol, domingo a domingo.

Um dia, os filhos dos donos da casa lembraram-se de que Mocinha vivia esquecida, ruminando coisa alguma lá nos fundos. Planejaram então uma viagem a Petrópolis. Ela mudaria de ares na casa de outros parentes da família, seria bom para velhice. Na viagem, Mocinha olhava a paisagem, imprensada no banco traseiro do automóvel como se ali nem estivesse. Ninguém lhe dirigiu a palavra até que disseram: Chegamos. Depositaram Mocinha com as pernas trôpegas na calçada e seguiram sem despedidas. Foi então que ela descobriu que em Petrópolis ninguém a esperava.

Mocinha da ficção é da mesma espécie da idosa encontrada em regime análogo à escravidão numa casa de classe média alta, no bairro Pinheiros, em São Paulo, no fim de junho. A dona do imóvel, Mariah Corazza Üstündag, que herdara a doméstica idosa da família, e o marido Dora Üstündag foram indiciados pela Polícia Civil de SP pela prática de trabalho escravo e violação dos direitos humanos.

É uma história tão corriqueira a de idosas domésticas abandonadas por ex-patrões. A velhice traz o fardo de não suportar o ritmo de trabalho intenso, algo que as novas gerações não suportam e tentam desesperadamente descartá-las como um sofá fora da estação, uma cama, uma tigela quebrada. Nesse caso de Pinheiros, a mulher de 61 anos, que em outras circunstâncias seria jovem, já é descartável. A Petrópolis dela foi um quarto sem banheiro nos fundos da casa.

A ex-patroa da idosa perdeu o emprego de executiva na Avon, onde trabalhava. A demissão de Mariah, no entanto, é caso único diante de um problema que só confirma o quão escravagista ainda é nossa sociedade. A diferença é que o que fazemos em casa deixou de ser privado. Tudo agora é público, incluindo nosso racismo, nosso escravagismo e nossas extremas desigualdades. 

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