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Ainda sobre racismo
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

Ainda sobre racismo

Clarice Lispector e Carolina de Jesus ou o quadro racista de Moser
Tipo Opinião
Regina Ribeiro, jornalista do O POVO (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Regina Ribeiro, jornalista do O POVO

Decidi, enfim, depois de muitas tentativas ler a biografia que Benjamim Moser escreveu sobre Clarice Lispector. Encontrei, por acaso, o boneco do livro, enviado pela Cosac Naify no ano em que obra estava para ser lançada há exatos 11 anos. Agora que comecei a ler, dei-me conta de um trecho que talvez tenha passado despercebido todo esse tempo.

Logo na introdução intitulada “Esfinge”, Moser narra o encontro entre Carolina de Jesus e Clarice Lispector a partir de uma foto. Carolina de Jesus é descrita como “uma negra que escreveu um angustiante livro de memórias da pobreza brasileira, Quarto de despejo”. Em seguida, o biógrafo afirma que ao lado de uma Clarice “proverbialmente linda, com a roupa sob medida e os grandes óculos escuros”, Carolina “parece tensa e fora do lugar, como se alguém tivesse arrastado a empregada doméstica de Clarice para dentro do quadro” (pg.22).

O que diria a própria Clarice diria se lesse tal comparação. Do que acompanhei até agora da prosa biográfica do escritor norte-americano, o trecho não em nenhuma razão ou sentido. Embora Moser quisesse dizer e disse que as origens da escritora ucraniana, cuja família atravessara o mundo fugindo de uma guerra fossem mais miseráveis do que as de Carolina, a forma como Moser descreve a cena nem tenta disfarçar o quão racista o trecho é.

Quero crer que se em vez de Carolina de Jesus, quem estivesse ao lado de Clarice fosse a Conceição Evaristo ou a Tony Morrison ou a Maya Angelou ou a Djamilia Pereira ou a Djamila Ribeiro ou a Grada Kilomba ou qualquer outra escritora negra a reação de moser seria a mesma. Ao lado da linda Clarice qualquer negra seria uma empregada invadindo o quadro. O fato é que onze anos depois de Moser lançar sua famosa biografia, os Estados Unidos retomaram ao tema do racismo sistêmico ocupando ruas, derrubando estátuas de escravistas, empurrando o debate para o “quadro” da campanha à reeleição de Donald Trump e, quem sabe, leve Moser a repensar a forma como Carolina de Jesus aparece no seu livro.

Ainda sobre o racismo, deixo aqui duas sugestões de livros e um webdoc que para quem se interessar sobre o tema tão urgente e necessário. O primeiro é Pequeno manual antirracista, de Djamila Ribeiro. Neste pequeno livro, a filósofa esmiúça como o lastro do discurso racista é capaz de iludir pessoas bem intencionadas, mas que são, por questões de desconhecimento, racistas. O livro de Djamila, na verdade, convida a fazermos uma autoanálise sobre a questão do racismo e nos incentiva à pratica quando indaga: “A questão é: o que você está fazendo ativamente para combater o racismo?”

O segundo é A origem dos outros, de Tony Morrison, que reúne uma série de palestras realizadas pela escritora norte-americana, em 2016, na Universidade de Harvard. Vasculhando a própria memória, textos históricos e literários que narram a vida dos afro-americanos na construção dos Estados Unidos, Morrison, primeira mulher negra a receber um Nobel de Literatura, passa em revista sua própria obra.

A escritora, morta agosto de 2019, transformou sua literatura numa profunda reflexão sobre o que é ser negro na América que, para ela, era ser um estrangeiro que travava uma luta cotidiana pelo pertencimento, como afirma no seu livro: “O risco de sentir empatia pelo estrangeiro é possibilidade de se tornar estrangeiro. Perder o próprio status racializado é perder a própria diferença, valorizada e idealizada”.

Por fim, deixou como dica dois webdocs aqui no O POVO + que abordam a negritude: Negro livre? traz uma reflexão sobre a vida do negro no País 130 anos após a proclamação da Lei Áurea, que tornou os escravizados brasileiros em homens e mulheres livres. Em Chico da Matilde: um dragão vivo rememora-se a luta do personagem contra a escravatura no Brasil. O jangadeiro negro aliou-se a abolicionistas para impedir o comércio de escravizados pelo mar cearense. O movimento fez com o Ceará fosse o primeiro estado brasileiro a abolir a escravidão, em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea.

Foto do Regina Ribeiro

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