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Que tipo de "cristianismo" é este?
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

Que tipo de "cristianismo" é este?

Como o "cristianismo" consegue ignorar o sofrimento de uma criança estuprada desde os seis anos e que engravida aos dez anos?
Tipo Opinião

O país, ou pelo menos, muita gente no Brasil, não ficou indiferente diante da notícia do estrupo e gravidez da criança de 10 anos que se submeteu ao aborto legal, ontem, num hospital do Recife. A história em si é absurda.

O estado de abandono em que essa menina se encontrava, a vulnerabilidade, a sujeição ao abuso sexual numa condição de total dependência – dependência própria da infância – é de uma violência tão brutal que mesmo sendo uma mulher e mãe, meu pensamento não o alcança. Embora tenha lido que a dor psíquica tem limites, sequer imagino as fronteiras de uma dor desse tamanho que se carrega pela vida afora.

Como se não bastasse uma realidade tão medonha, ainda tenho de lidar com a manifestação de um cristianismo que rejeito por completo. Ontem, na porta do hospital onde a menina se encontrava, cristãos de várias correntes religiosas, aos gritos, chamavam médicos de assassinos, numa manifestação em nome de alguma coisa que eles chamam de “vida”.

Parei, consternada, diante da foto publicada no site de notícias me perguntando: Que raios de cristianismo é esse? Quais os fundamentos de uma mentalidade tão distante do amor cristão? Como professar uma fé que cria um abismo entre si mesmo e o outro, numa dissonância abissal dos ensinamentos de Cristo?

Para mim, um cristão teria ido ao hospital receber a garota com flores, brinquedos, livros, cartões com palavras amorosas. Cristãos teriam ido se solidarizar com essa criança. Teriam convidado um coral infantil para cantar da porta do hospital, a fim de amenizar o sofrimento da menina que nem entende direito o que está lhe acontecendo.

Cristãos deveriam ter dito para ela: estamos aqui, porque embora a gente não consiga sentir sua dor e reconheça que o que aconteceu a você foi horrível, podemos ajudá-la a recomeçar sua vida. Você vai conseguir seguir em frente. Cristãos poderiam ter dito que Cristo não faz acepção de pessoas.

Lidar com esse cristianismo tosco e vingativo é a pior experiência recente que tenho tido com a minha fé. Uma mistura de incompreensão e desalento, embora conheça alguma coisa da história da Igreja e alguns relatos soam igualmente estranhos como, por exemplo, a inquisição; a aproximação entre a Igreja e o nazismo;  a Igreja e o fascismo e o racismo e o machismo - a lista é imensa -; mais atualmente, a pedofilia incrustada em algumas alas; o mercado escancarado da fé.

E por falar em fé, reparem na afirmação de Silas Malafaia sobre a criança estuprada desde os seis anos: “Pior que o estupro é o assassinato de um ser indefeso. O desgraçado assassino do juiz tinha que estar na cadeia”. Qual é mesmo a defesa de uma criança entre os seis e dez anos? Não seria o estuprador que deveria estar na cadeia? O que Silas Malafaia entende sobre o que é pior, em se tratando do estupro de uma menina?

Nessas horas, ter lido Vivo até a morte, de Paul Ricoeur é algo confortante. A obra reúne textos incompletos e rascunhos encontrados na escrivaninha do autor, após sua morte, em 2005. Em alguns deles, o filósofo Ricoeur aborda sua luta particular com uma fé que ele não consegue explicar de um ponto de vista lógico, como requer a filosofia.

O problema de Ricoeur, com certeza, era imenso. Mas, não menos grande é pensar em quão distante de mim estão práticas conservadoras que se dizem cristãs, mas que parecem apenas encobrir um nível grotesco de egoísmo e perversidade. Do tipo que diz: “Pior do que o estupro”...

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