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Adoráveis ateus
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

Adoráveis ateus

Já falei algumas vezes neste espaço sobre fé. Para mim, ela é tão incompreensível quanto a falta dela. Embora a experimente há tempos, só agora na maturidade desconfio que a fé não é coisa para estúpidos. Ela exige uma reflexão constante e o ideal é adiar qualquer julgamento quanto a questão e fugir daqueles que vendem a fé com quem negociam dados no submundo da internet.

Sobre o inexplicável da fé, lembro-me que minha tia freira me contou um dia que Rachel de Queiroz era sua escritora preferida. Quando jovem, a leitura de Rachel e a convicção ateia da escritora haviam lhe ajudado na segurança da vocação religiosa, caminho que minha tia resolvera trilhar ainda muito moça. Fiquei dias pensando nesta experiência: uma jovem que estava indo para o convento encontra ressonância na voz de uma escritora que afirma não crer.

Na conversa, minha tia falava na firmeza de Rachel em afirmar sua condição de não crente. A jovem leitora que era minha tia, naqueles idos de 1950, ponderava na época sobre a coragem da escritora em fincar pé na descrença num tempo em que religião e mulher pareciam feitas uma para outra. Em Fortaleza havia jornais ensinando as moças a serem contritas, boas esposas, excelentes mães e donas de casa impecáveis. Rachel não tinha pais religiosos. Aliás, só foi para escola porque a avó Miliquinha descobriu que a neta não sabia fazer o sinal da cruz.

A escritora Ana Miranda, na sua crônica do último domingo: “O que diria Rachel”, fez-me lembrar de quantos ateus eu já li na minha vida, além de Rachel, que em algumas crônicas durante a velhice, reclamou de não ter fé. Queria acreditar, mas não conseguia, dizia a cronista. Nem soube que incentivou uma freira.
Um dos livros mais interessantes de Umberto Eco é “No que creem os que não creem”. Por cartas publicadas no jornal italiano Liberal, o cardeal Carlo Maria Martini e Eco dialogam sobre a fé. A maior tensão dessa conversa diz respeito à questão ética entre os que creem e os que não creem.

Hoje, quando vimos tantos que professaram sua fé num cristianismo político negacionista que escolhem líderes improváveis, sinto falta de ateus como Eco, Rachel, Saramago, Clarice, Quintana, tantos homens e mulheres tocados pelo ato divino da criação.

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