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Memórias de um encontro "inédito viável" com Paulo Freire
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Ator, dramaturgo e diretor teatral. Fundador do Grupo Pesquisa (1978) e um dos integrantes da equipe fundadora da Televisão Educativa do Ceará (hoje TVC) e da Rádio Universitária. Diretor do Centro de Pesquisa em Teatro e formulador da teoria e do método Teatro Radical Brasileiro

Ricardo Guilherme arte e cultura

Memórias de um encontro "inédito viável" com Paulo Freire

Confira recortes da entrevista realizada pelo teatrólogo Ricardo Guilherme com o educador Paulo Freire em 1983
Educador Paulo Freire tem centenário de nascimento celebrado em 2021 (Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Educador Paulo Freire tem centenário de nascimento celebrado em 2021

Eis uma edição de trechos de minha entrevista com o filósofo e educador Paulo Freire, realizada em 6 de outubro de 1983, no programa Opinião, da Rádio Universitária da Universidade Federal do Ceará.
Ele aos 62 anos; eu aos 28.

Ricardo Guilherme:  O chamado método Paulo Freire se implantou nos anos 1960. Seria essa abordagem ainda viável hoje, do ponto de vista ideológico?

Paulo Freire: Faz exatamente 20 anos, este ano, que eu comecei a aparecer, mais ou menos assim, publicamente no País, no meu País, no nosso País, e se falou muito naquela época e ainda hoje se fala um pouco dessa questão, que também não me agrada, o chamado Método Paulo Freire de Alfabetização (...) o que eu buscava muito mais do que um conjunto de técnicas no campo, por exemplo, da alfabetização de adultos, o que eu buscava no fundo e busco, e continuo buscando, era uma compreensão ampla, dialética, crítica da própria prática educativa de que a alfabetização é um momento, e um momento importantíssimo. Inclusive, um momento fundamental. Ora, a tua pergunta, se encarada assim, em primeiro lugar, possibilita o ouvinte a também preocupar-se de maneira um pouco mais ampla com a questão da alfabetização e entender que a alfabetização é um negócio muito mais sério e muito mais importante do que, às vezes, a gente pensa e que por isso mesmo, a alfabetização não pode ser resolvida nem encarada sob o ponto de vista de técnicas de ler e de escrever. (...) Quando tu perguntas ‘Paulo, tem sentido isso, inclusive do ponto de vista ideológico’, eu te diria que tem sentido para aqueles que estão numa postura ideológica ou política como eu estou (...) aos reacionários a compreensão que eu tenho da educação e da prática não interessa.

RG: Qual é essa compreensão?

Paulo Freire: Compreensão que se fundamenta, sobretudo, nos interesses. Nos interesses históricos, sociais, das classes populares. Se você me diz ‘Paulo, você então é sectário? E os caras que não são da classe popular?’ Vê bem. Eu gostaria de te dizer que educação é um ato político. E como é um ato político, a educação não é neutra. Nunca houve até hoje uma prática educativa que fosse neutra. Eu sempre digo até o seguinte: quando alguém se declara neutro, ele usa a neutralidade explicitada para esconder a opção. Portanto, toda neutralidade afirmada é sempre uma opção escondida. É difícil sair dessa. Ora, a educação, por exemplo, que se diz de si mesma que é neutra, está indiscutivelmente a serviço de quem tem poder. A educação que eu que eu proponho, não sendo também neutra, tem a coragem de dizer que não é neutra e é uma educação que está a serviço dos interesses do povo, portanto, dos interesses da grande maioria do país. (...) Nós precisaríamos, evidentemente, de estimular, de intensificar a formação científica, mas o que é preciso, e essa é a tese que eu defendo, é que as massas tenham o direito de saber, tenham o direito de ganhar ciência, têm o direito de conhecer. Têm o direito de conhecer o que já conhecem e de conhecer o que ainda não conhecem, ou têm o direito de conhecer melhor o que já conhecem hoje e conhecer o que ainda não conhece. Em outras palavras, a proposta político-pedagógica que com que eu me comprometo é uma proposta não-elitista e é por isso que ela não pode ser aceita por quem é elitista, evidentemente.

RG: Depois desse período conturbado da vida política brasileira em que o Método Paulo Freire foi banido sobretudo da zona rural e da periferia das grandes cidades, o país mergulhou no chamado movimento brasileiro de alfabetização, Mobral, que até hoje persiste no seu trabalho, apontado como sucedâneo, ou como substituto, do Método Paulo Freire. Existe alguma sintonia possível entre a concepção de alfabetização de Paulo Freire e o Mobral?

Paulo Freire: Olha, eu até que fico contente porque tu fizeste essa pergunta e me dá a oportunidade de uma vez mais me manifestar sobre isso de maneira não sectária, mas de maneira radical, evidentemente. Quer dizer, para mim há uma diferença importante, uma diferença radical entre ser radical e ser sectário. Eu não sou sectário. Quer dizer, eu não fujo, eu não tenho medo de uma verdade. O que eu tenho dito quando me perguntam isso publicamente é o seguinte: considerando exatamente um ponto antes afirmado que é o da inviabilidade de uma postura neutra na prática educativa, considerando exatamente isso, eu te diria que se houvesse, hoje, por exemplo, uma identificação, uma posição semelhante entre mim, portanto entre a minha proposta e a proposta do Mobral, e se ambos disséssemos Mobral e eu, indiscutivelmente e risonhamente disséssemos ‘indiscutivelmente, não há nada de diferente entre nós, é que um dos dois estaria absolutamente errado. Não é possível uma identificação entre Mobral e mim, na medida em que não é possível neutralidade da educação. E se não é possível a opção político-ideológica do Mobral, não tem nada que ver com a minha.

RG: O senhor poderia configurar as duas concepções?

Paulo Freire: Exato, exato. A postura do Mobral, enquanto postura de classe dominante é uma postura que leva necessariamente o Mobral a uma prática na qual em lugar de um desvelamento do concreto, de um desvelamento do real, se leva essa prática, necessariamente se funda uma ocultação do real. Isso é a ideologia, realmente. No outro aspecto, que é natural, tem que ver com a postura dessa ideologia que se faz, inclusive, em nome da democracia, evidentemente (...) Por exemplo, a de estabelecer uma certa incoerência entre o texto, o texto proposto, a ser lido pelo alfabetizando e o contexto do alfabetizando. E pra mim a leitura da palavra é precedida pela leitura do mundo que o alfabetizando faz antes de ler a palavra e a leitura da palavra, o aprendizado da leitura da palavra, remete o alfabetizando à releitura do mundo, que foi feita antes da leitura da palavra, mas do mundo, do mundo real, do mundo concreto (...)

RG: Para a viabilidade do chamado Método Paulo Freire, qual seria a estratégia?

Paulo Freire: (...) eu até preferia despersonalizar a questão e dizer o seguinte: que viabilidade a gente teria, no caso brasileiro hoje, para fazer uma educação desocultadora da realidade, quer dizer, desmistificante da realidade (...) Por exemplo, concretamente, que possibilidade teríamos hoje de estudar, ora formalmente, sistematicamente nas universidades, ora nas escolas primárias, ora também em encontros informais, estudar por exemplo com um grupo de estudantes, debater com um grupo de estudantes, tentando desmistificar e desmitificar aspectos da nossa realidade como por exemplo o de a miséria nordestina. A miséria nordestina não é resultado das condições climáticas do Nordeste, nem é tão pouco o resultado puramente da chamada espoliação do capital paulista (...) E com esse tipo de análise culpando a natureza de um lado e culpando o capitalismo, o capitalismo paulista, no fundo a gente oculta a presença de uma classe dominante profundamente perversa e profundamente incompetente, até do ponto de vista capitalista, que é a de cá. Quer dizer, é preciso então fazer uma pedagogia da desocultação, a gente tem que fazer, agora te digo (...) O poder no poder não pode propor essa educação e a gente não pode ser ingênuo pra isso, mas eu acho que nós que temos um compromisso conosco, um compromisso com o povão desse país, um compromisso com os espoliados, com os ofendidos, com os humilhados, nós temos o dever histórico de encontrar caminhos e de inventar onde eles não existam, encontrar caminhos para viver uma prática. Pode ser até que alguém me diga ‘puxa, como Paulo Freire continua romântico’ e eu diria ‘viva o romantismo a esse nível!’. Quer dizer… Nós temos então que inventar oportunidades, caminhos para esta pedagogia da desocultação, que no fundo é assim uma espécie de pedagogia da indignação. É preciso que, diante da fome, a gente primeiro não culpe a natureza, segundo não arranje explicações paliativas, nem soluções paliativas. A gente tem que desocultar. A indignação é desocultante. Eu acho que nós temos o dever, agorinha, por exemplo, agorinha, através desta emissora, que é uma emissora de uma universidade, sem ter nenhum sentimento de culpa porque estou aproveitando o seu convite até cá e possivelmente até que eu posso criar um problema para você, porque como responsável pelo seu programa eu estou dizendo isso e você como responsável do programa possibilitou que eu dissesse isso através do seu programa. Pois bem, o que eu não podia era deixar de aproveitar a oportunidade de ter este microfone diante de mim para dizer a todos os que me escutam agora que é preciso desocultar. E o que eu estou fazendo aqui agora é também um momento da pedagogia desocultadora, eu estou servindo-me do seu microfone para desocultar algumas verdades, mesmo que seja de maneira muito ainda simplista, isso tem que ser feito. Você deve fazer isso também no seu teatro. O teatro também é político, eminentemente político e por isso também é eminentemente pedagógico, além de artístico. É que a arte também possibilita isso, apesar de não estar a serviço disso, e de evitar o risco de ser dobrada pelos interesses políticos e ideológicos, mas ela é também isso.


RG: O senhor se referiu agora há pouco ao humilhado, ao oprimido, ao ofendido. O ofendido, humilhado brasileiro tem consciência de que é humilhado e de que é ofendido, ou ele é conivente com quem o ofende?

Paulo Freire: Olha, vê bem: essa é uma pergunta muito interessante, entende? Porque ela oculta, ela tem uma dimensão de verdade que a ciência deve verdadeiramente desocultar. É que vê o seguinte: é que em certo momento, em certo momento da consciência ofendida, em certo momento da consciência oprimida, a consciência oprimida inclusive para sobreviver vira conivente da consciência opressora, mas não porque ela seja na verdade conivente com a sua opressão. É que o nível da opressão é de tal maneira terrível, o nível da opressão, da violação, da manipulação, da dor, o nível é tão profundo (....) A perversidade, o nível da perversidade do dominante é tão grande que o dominado não tem outra coisa que fazer senão isso. (...) Essa conivência precisava ter outro nome que não a conivência. Há uma semântica aí a ser refeita, a ser reestudada. Não é a conivência. A conivência é conivência na medida em que ela tem um mínimo, um mínimo de consciência do pacto, aí independe a consciência, aí há uma necessidade biológica da sobrevivência e é isso que parece a nós a conivência, mas em um determinado momento da confrontação entre o oprimido e o opressor, na situação concreta da opressão, da dor, da miséria um determinado momento, essa consciência se rebela. Essa consciência se rebela porque ela descobre, ela descobre o mais além da própria situação opressora em que ela se encontra, ela descobre uma coisa que eu chamei muito metaforicamente na pedagogia do oprimido, ela descobre que existe uma coisa chamada inédito viável. Quer dizer, é uma futuridade a ser construída pela transformação do presente de opressão e é nisso que eu aposto. Se tu me perguntas para terminar o teu programa, se tu me perguntas ‘Paulo e tu apostas que tu vais ver?’ eu digo ‘não, o meu otimismo não chega até lá’, mas como eu tenho uma compreensão da história ininterrupta, não em progressão, como se pensou no século passado, de uma perfeição que não pararia e a história mostrou que isso tudo era sonho inviável, mas eu tenho uma compreensão histórica, quer dizer, eu sei que nada é, eu sei que ninguém é, eu sei que tudo está sendo. Então eu sei também que uma geração tem o dever de criar as condições materiais e recriar as condições materiais que encontrou para possibilitar que a geração que vem, possa fazer uma recriação melhor, mais radical, uma reflexão melhor. Eu vou morrer dentro de algum tempo, é claro, não digo isso com alegria, nem tô pedindo a Deus para me acabar logo, não, mas eu sei que vou morrer, mas vou morrer contente. Porque estou dando um mínimo, um mínimo, um mínimo. Mas a história se faz de mínimos e não só de máximos. Tô dando um mínimo com a minha presença no mundo, como agora, nessa noite. Eu acho que esse programa tem uma dimensão que transcende a ele mesmo e é por isso que eu, de novo, agradeço a vinda minha a cá.

RG: Nós só temos é que agradecer esse mínimo que para nós transcende as dimensões do mínimo e se torna o máximo em ouví-lo e partilhar das suas ideias. Obrigado, Paulo Freire.

Foto do Ricardo Guilherme

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