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Não há vacina para os homicídios no Ceará
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Não há vacina para os homicídios no Ceará

Chegamos ao fim de 2020 com uma tendência de crescimento nos casos de Covid-19. A ameaça de uma segunda onda de contaminações fez com que o Governo do Estado voltasse a adotar medidas mais restritivas visando reduzir aglomerações e, com isso, diminuir o alcance de infestação da pandemia. Os dados mais recentes da plataforma IntegraSUS, do Ministério da Saúde, revelam a existência de 315.936 casos confirmados e 9.786 óbitos provocados pela doença no Ceará.

A perspectiva de que possamos vir a contar com uma vacina em 2021 é um alento. Não se trata, contudo, de um salvo conduto para que possamos agir de forma irresponsável desde já, como se o vírus não estivesse mais circulando por aí, com todo seu potencial de letalidade. É preciso ter cuidado redobrado ainda mais em se tratando de um período do ano marcado por confraternizações, festas e férias. A vontade de abraçar quem se gosta terá de ser refreada por um bem maior. Pelo menos por enquanto.

Em paralelo ao avanço da doença, o Ceará voltou a ser afligido por uma epidemia que teima em ser banida: a da violência letal. Após um ano com números em queda, os assassinatos aumentaram em 2020. Dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) revelam que 3.720 pessoas foram assassinadas até novembro. Para efeito de comparação, o Estado registrou 2.257 homicídios em todo o ano de 2019. A taxa de homicídios do Ceará gira em torno de 40,4 por 100 mil habitantes. Em 2019, esse índice era de 24,5 por 100 mil habitantes.

Já em abril, a coluna apontava para o incremento da violência letal na esteira do avanço dos casos do Coronavírus. Na época, escrevi: "A escolha política por uma estratégia de segurança pública focada na contenção cobra seu preço quando se vê confrontada por situações limites. Os dois picos de violência letal registrados este ano possuem um aspecto em comum: a sobrecarga enfrentada pelos órgãos de segurança para manter o policiamento funcionando. Se a paralisação dos policiais militares durante o motim fez com que o efetivo sofresse baixas significativas, a pandemia está exigindo um esforço extra que é o de reprimir aglomerações e fechar estabelecimentos comerciais".

Vale ressaltar que esse mesmo esforço será exigido novamente nas festas de fim de ano. As forças de segurança terão um trabalho redobrado em manter as pessoas isoladas dentro dos protocolos estabelecidos pelas autoridades sanitárias ao mesmo tempo em que terão de dar conta de um novo incremento nos assassinatos.

Se a alta registrada no começo do ano poderia ser atribuída ao motim da Polícia Militar, o recrudescimento dos casos no segundo semestre exige uma nova explicação. Em julho, a curva da violência letal começa a diminuir ainda que os números deste ano nunca tenham sido inferiores aos de 2019. Em outubro, contudo, é possível perceber que uma nova curva de crescimento vem se formando em uma nítida indicação de que, assim como os registros da Covid-19 voltaram a preocupar, os assassinatos também se tornaram mais presentes. Se há impaciência pelo abraço de quem se ama por causa das limitações do isolamento social, há muitas pessoas a quem esse abraço se tornou impossível devido à situação absurda de violência em que vivemos.

Diferentemente do que ocorre com a pandemia do Coronavírus, no entanto, não vemos a mesma preocupação e nem a mesma urgência do Governo do Estado em lidar com a questão dos homicídios. E isso se deve muito à nossa insensibilidade como sociedade. Não podemos esquecer que moramos em um lugar onde mais de 5 mil pessoas foram assassinadas em um único ano e nada aconteceu. A experiência mostra que somos imunes às dores e insensíveis aos clamores de centenas de famílias que veem seus filhos morrerem diariamente sem que o mínimo de justiça seja feito.

Um sintoma dessa insensibilidade é a falta de repercussão em torno das mortes por intervenção policial. Neste ano, 143 pessoas foram mortas em confronto com policiais. O número já é maior que todo o ano passado quando a SSPDS registrou 136 ocorrências. O perfil de quem morre certamente diz muito sobre esse silêncio. Não se trata de vítimas aleatórias, escolhidas ao acaso. Levantamento da Rede de Observatórios da Segurança divulgado na semana passada revela que 87% dos mortos pela polícia no Ceará, em 2019, eram negros (pretos ou pardos). A despeito do que acontece com a Covid-19, não há qualquer tipo de vacina para a epidemia de mortes violentas no Ceará.

 

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