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Números da letalidade policial em queda: o bom exemplo que vem de São Paulo
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Números da letalidade policial em queda: o bom exemplo que vem de São Paulo

Tipo Análise

A letalidade policial é um ponto cego na política de segurança pública do Ceará. As mortes por intervenção policial aumentaram no ano passado, batendo o recorde para um só mês, quando 35 ocorrências foram registradas em abril, no auge do isolamento social. Casos como a chacina do Curió, a operação policial que resultou na execução de uma família inteira em Milagres e a morte do adolescente Mizael são manchas em uma gestão que insiste em varrer problemas crônicos da corporação para debaixo do tapete.

A polícia é definida por seu uso autorizado da força. Confrontos armados fazem parte do cotidiano. Seria ingênuo acreditar que as situações de conflito se resolveriam todas apenas na dissuasão. No entanto, a letalidade nas ações não pode ser naturalizada na atividade policial, como se não houvesse modos de agir de forma diferente. Quanto mais preparo e treinamento para lidar com situações-limite menor a possibilidade de as intervenções resultarem em perda de vidas.

A Polícia Militar de São Paulo, assim como ocorreu com a PM do Ceará, registrou um incremento em seus números de letalidade no primeiro semestre de 2020. Em vez de tratar a situação como se ela fosse inevitável, o comando da corporação adotou uma série de medidas visando à redução da violência letal. O resultado é promissor: nos sete meses em que as ações foram implementadas, as mortes por intervenção policial caíram 47,8%.

Com uma taxa de 0,48 morte por 100 mil habitantes, São Paulo caiu da 15ª para a 22ª posição entre os estados com maiores taxas de letalidade policial, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O Ceará, por sua vez, ocupa a 14ª posição, com uma taxa que é o dobro da paulista (1,04 morte por 100 mil habitantes). Amapá é o estado mais violento da federação, com uma taxa de 8,12 mortes por 100 mil habitantes.

Segue o que foi feito pela Polícia Militar de São Paulo e que poderia ficar como reflexão para as demais polícias do Brasil:

Criação de uma comissão de mitigação de não conformidades e reuniões técnicas. Instalada em nível de comando regional, a medida teve como objetivos identificar não-conformidades e ajustar protocolos de atuação visando a redução da ocorrência de mortes durante intervenções policiais. Soluções foram propostas de forma participativa ouvindo supervisores e líderes da instituição. O uso estratégico de treinamentos foi crucial para que as orientações chegassem rapidamente à corporação.

Depuração interna fortalecendo a disciplina. Os mecanismos de supervisão e disciplina foram fortalecidos, com ênfase na atuação da polícia judiciária militar em cada comando local. O comandante do Batalhão, o comandante da Companhia, o tenente de serviço e técnicos da Corregedoria passaram a estar, de forma obrigatória, mais presentes nas ocorrências, aprimorando a competência investigativa e a supervisão dos comandos sobre as intervenções policiais com registro de morte.

Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar. O acompanhamento aos policiais envolvidos em situações de morte passou por uma atenção mais dedicada e exclusiva. Procedimento semelhante foi adotado nas atividades rotineiras com o intuito de fazer com que os policiais lidem melhor com o estresse inerente à profissão. Em conversas com profissionais da segurança, essa certamente é uma das principais queixas que escuto: o de lidar sozinho com o problema sem contar com um amparo psicológico e clínico institucionalizado da corporação.

Aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e armamento moderno. A arma de fogo não pode ser o único recurso disponível ao policial durante uma abordagem. Por causa disso, armas de incapacitação neuromuscular foram adquiridas além de espargidores de agentes químicos. O arsenal também vem sendo atualizado com a aquisição de pistolas, metralhadoras e fuzis mais modernos, ampliando a capacidade de dissuasão sem aumentar, em paralelo, o número de vítimas fatais.

Implementação de câmeras nos uniformes. O uso do equipamento traz mais transparência à atividade policial além de permitir que as imagens sejam usadas como provas em um contexto de investigação da conduta dos policiais. Três batalhões operam atualmente com esse monitoramento remoto.

Por certo, a implementação de tantas mudanças não é uma tarefa trivial. Muitas resistências e recuos devem estar ocorrendo no interior da corporação paulista. Não é fácil mudar uma cultura organizacional com valores tão arraigados quanto a Polícia Militar, mas é o caminho a ser feito. Em se tratando do Ceará, as medidas citadas acima são plenamente possíveis de serem cumpridas. Os comandos são formados por profissionais bastante qualificados que certamente são sensíveis a essa questão. Além disso, recursos financeiros existem. Basta ver o quanto é investido anualmente pelo Estado na área da segurança pública.

Enfrentar oposições é algo intrínseco a qualquer gestão, em especial no que diz respeito ao aumento do controle social sobre a atividade policial nas ruas. Ter a coragem de encarar esse desafio, com todos os riscos que lhe cercam, é o que separa um mero gestor de um verdadeiro líder. É assim que as figuras públicas deixam sua marca na História.

 

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