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Notas para a construção de uma segurança comunitária
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Notas para a construção de uma segurança comunitária

Criado em 2012, o Programa Estadual de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH) é responsável por um conjunto de medidas protetivas, atendimento jurídico e psicossocial aos defensores dos Direitos Humanos no Ceará que estejam em situação de risco ou que sofreram violação de direitos por causa de sua atuação, visando à garantia da continuidade de suas atividades. Atualmente, o PPDDH monitora 37 casos envolvendo 84 pessoas.

As ocorrências atendidas estão divididas em cinco categorias: indígenas, quilombolas, zona costeira, reforma agrária e violência urbana. No mapa de ameaças aos direitos humanos, Fortaleza concentra o maior número de casos, seguido pelos municípios do litoral cearense. A especulação imobiliária, que vê na desapropriação de territórios das comunidades tradicionais e povos originários uma oportunidade de expansão, aliada à violência institucional são os principais motivos de risco à integridade de quem ousa resistir e denunciar.

Quando ampliamos a visão sobre o que está ocorrendo é possível perceber a existência de um fenômeno denominado capitalismo "neoextrativista". Se na lógica anterior do capitalismo, o pressuposto era a criação de mercados consumidores, em seu estágio atual, as forças do capital prescindem até mesmo dos trabalhadores e das burguesias locais para se desenvolverem. "Uma forma brutal de dizer isso é dizer que os recursos naturais de grande parte da África e de boa parte da América Latina contam mais do que as pessoas dessas terras contam como consumidores e como trabalhadores", explica a socióloga Saskia Sassen, em um artigo.

Em consequência disso, uma parcela significativa da população não tem mais lugar dentro dessas sociedades. Como são compreendidas como pessoas sobrantes, precisam ser expulsas do único bem que ainda possuem, ou seja, seus territórios. A lista dos "expulsos" é vasta: os abjetamente pobres, desalojados de países, refugiados, populações minoritárias, os presos, os jovens que, mesmo fisicamente saudáveis, não são incorporados ao mercado de trabalho formal.

Em conversa com os defensores indígenas, da reforma agrária e quilombolas, é possível perceber o quanto eles estão na linha de frente dessa nova face do capitalismo. Ao mesmo tempo, são vítimas-herdeiros de um processo brutal de concentração de riquezas que remonta à colonização. Os regimes políticos mudam e nada se altera em sua condição de vulnerabilidade. Pelo contrário. A situação só agravou, haja vista tantas lideranças comunitárias, ambientalistas e defensoras dos direitos humanos sendo assassinadas nos últimos anos. O sistema de justiça criminal, por sua vez, não tem dado respostas eficazes a esse problema enquanto o número de grupos armados só aumenta.

Temos, no Ceará, muitas pessoas sob risco. Elas precisam estar vivas para lutar pelo que acreditam e não serem apenas objeto de memória. Dentro dessa perspectiva, é preciso que os movimentos sociais, os coletivos e as comunidades tradicionais criem seus próprios planos de segurança comunitária. A América Latina, em especial o México, possui bastante conhecimento acumulado sobre o tema. Nesta coluna, abordo algumas questões para levantar o debate.

O Projeto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Prodesc), do México, elaborou o estudo "Segurança comunitária e território: Aspectos metodológicos sobre a defesa integral" sobre o assunto a partir de suas experiências. A organização entende a segurança comunitária "como um processo contínuo que garante condições coletivas para o exercício da defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais, através de uma série de estratégias e capacidades que possibilitam salvaguardar a integridade física, psicológica, coletiva e comunitária das defensoras e defensores no território em que vivem".

O ponto de partida da necessidade de criação de uma estratégia comunitária de segurança foi o limitado alcance das medidas cautelares protetivas. A falta de visibilidade e de reconhecimento dos defensores os colocam em uma situação vulnerável. Essa condição é ainda mais agravada em relação às defensoras. Daí a necessidade de pensar em mecanismos de segurança que fortaleçam as estruturas coletivas e defenda as pessoas de maneira integral.

Vale ressaltar que as estratégias de segurança comunitária precisam abranger as esferas pessoal, coletiva e comunitária. A segurança começa no próprio corpo, mas se estende para a organização e para a comunidade onde tais pessoas vivem. O plano de segurança deve contemplar todas essas esferas, dotando os defensores da capacidade de dar resposta efetiva aos riscos, ameaças e vulnerabilidade, bem como de estar preparados para preveni-los, contê-los e enfrentá-los.

A publicação traz mais detalhes sobre como estruturar essa ação, bem como exemplos concretos e metodologias. O mais importante, neste momento, é ter a noção da urgência de se preparar para lidar com os cenários mais improváveis.

A meta é fazer calar, silenciar quem tenta se opor ao avanço de um modelo de produção predatório e que desconsidera a vida das pessoas e a memória coletiva dos povos. Para evitar que isso aconteça, mais que os mortos, os vivos devem ser presentes.

 

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