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Brasil: arme-se ou deixe-o
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Brasil: arme-se ou deixe-o

Tipo Opinião

É difícil escolher o trecho mais impactante da gravação da reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril. Por estar diretamente relacionada ao tema da coluna, abordarei a defesa do armamento da população feita pelo presidente Jair Bolsonaro. A afirmação emergiu como uma resposta ao ministro da Educação Abraham Weintraub e ilustra de forma precisa o que seja talvez a principal plataforma política deste governo.

A declaração de Bolsonaro é a seguinte: "Olha como é fácil impor uma ditadura no Brasil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um f... aparecer para impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um b... de um prefeito faz um b... de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua (...) Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado".

A fala do presidente ecoa a pregação dos grupos de defesa do armamentismo que, por sua vez, baseiam-se em uma leitura descontextualizada da constituição norte-americana. A tão famosa Segunda Emenda, que ampara o discurso pró-armas, afirma textualmente que "uma milícia bem regulamentada, sendo necessária à segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas, não será infringida".

Quando a emenda foi ratificada, em 1791, os EUA ainda possuíam milícias e havia o temor de que os direitos dos estados federados fossem limitados por um governo central tirânico. Valer-se da mesma justificativa para defender o uso de armas de fogo hoje soa, no mínimo, anacrônico.

A Segunda Emenda vem sendo alvo de fortes questionamentos nos Estados Unidos. Marchas pelo controle de armas de fogo se espalham pelo país. Embora não haja margem política para que a legislação seja revogada, o que se pretende é estabelecer uma regulamentação mais rigorosa sobre o comércio, posse e registro de armamentos tendo em vista a escalada de chacinas em escolas e universidades cometidas por jovens com acesso irrestrito a armas e munições. A retórica armamentista de Bolsonaro, contudo, vai além da bravata. Diversas medidas estão sendo tomadas visando a erosão do Estatuto do Desarmamento. Um dia após a realização da reunião ministerial - quando houve uma cobrança direta sobre o assunto - uma portaria ampliou a quantidade máxima de munição que pode ser adquirida por civis autorizados (600 munições por ano por arma), militares, policiais, guardas municipais, agentes prisionais, magistrados e promotores de justiça (1,2 mil munições de calibre permitido por ano por arma).

Conforme o Instituto Sou da Paz, que acompanha de perto as constantes mudanças na legislação sobre armas de fogo, a portaria traz uma série de riscos pois amplia as possibilidades de desvios e abastecimento tanto do crime organizado quanto de milícias formadas por agentes das forças de segurança. Antes disso, em 17 de abril, o Ministério da Defesa já havia revogado três portarias do Exército Brasileiro que criavam um sistema de rastreamento de armas e munições no Brasil com entrada em vigor prevista para este mês.

Diversos estudos demonstram o impacto das leis que restringem o uso de armamentos sobre a redução dos homicídios. Na contramão dos exemplos mais bem-sucedidos de redução da criminalidade e da violência, o Governo Federal está propondo um verdadeiro derrame de armas de fogos e munição na sociedade com consequências imprevisíveis.

Diante dessa escolha política, algumas perguntas precisam ser feitas: Quem se beneficia da circulação irrestrita de armas de fogo no país? Quais os reais interesses por trás de tanto esforço governamental em coibir a ação fiscalizadora das polícias e das forças armadas sobre o mercado armamentista?

A própria declaração de Bolsonaro durante a reunião pode fornecer algumas pistas sobre as respostas. Lida de forma rápida e sem apuro, a alegação de que estando desarmado o povo brasileiro poderia ser vítima de uma ditadura ou ser “escravizado” soaria plausível caso tivéssemos um inimigo externo ou vivêssemos sob a ameaça de invasão, o que definitivamente não são os casos.

Analisada com mais calma e ponderação, percebe-se que a declaração visa insuflar determinados segmentos da população com o fim de contestar a autoridade pública de prefeitos e governadores. O inimigo, como se pode ver, é interno. Trata-se de uma sublevação orientada de cima para baixo. Dito por qualquer pessoa soa grave. Dito pelo presidente em pessoa é gravíssimo.

Em última instância, o discurso de Bolsonaro é um forte estímulo para a formação de grupos armados que compartilham de sua ideologia e do seu projeto de poder, ambos travestidos sob a fantasia de uma “guerra” pela defesa dos valores citados pelo próprio presidente na reunião: família, Deus, Brasil, armamento, liberdade de expressão e livre mercado. Não à toa está sendo cada vez mais comum se deparar com parlamentares portando armas nas redes sociais e membros do próprio governo fazendo menção ao uso de armamentos.

Do discurso belicista para a prática é um pulo.
Para travar essa luta é preciso contar com o poderio que só as armas de fogo dispõem. Daí a necessidade de afrouxar a fiscalização e ampliar o acesso aos armamentos justamente dos segmentos da população que mais se alinham ideologicamente ao governo: militares, policiais e membros do poder judiciário. Parafraseando um slogan dos tempos mais violentos da Ditadura a ordem agora é essa: Brasil, arme-se ou deixe-o.

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