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A canção redentora
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

A canção redentora

A Mário Wilson Costa Filho

Enquanto o coronavírus lambe a Cidade como a um picolé de cajá, espalhando sua baba pegajosa e letal nas ruas, nos edifícios, nas praças e nos parques, a multidão insana, enjoada de ficar em casa, ganha o espaço público. Aglomera-se na praia, doida por um bronze, nas calçadas das lojas ("estou só olhando, viu?"), na porta dos shoppings ("vai bater perna lá para depois bater as botas"), nos botequins ("beber em casa não dá"). A máscara, esta nova e inescapável algema, repousa sob a papada, pendura-se na orelha, dormita no fundo do bolso da calça. Nelson Rodrigues, numa de suas crônicas geniais (qual delas não seria, aliás?) dizia que o brasileiro não só era um impotente da admiração como também um narciso suicida. E rolam brindes, beijos, abraços assassinos.

Em contraponto, põe medrosamente a cara na janela o Sr. Novo Normal. Embrulhado num traje plástico, com máscara cirúrgica e face-shield, é ver uma cobaia de testes nucleares. Fiel devoto do álcool em gel e do sabonete líquido, já lavou a casa toda pela terceira vez e agora higieniza os sacos plásticos que envolvem as compras que chegam pelo tele-entrega. Não compreende porque os pães ficam imprestáveis depois de mergulhados numa solução de água e detergente. Tornou-se um ser digital, amante da distância e do isolamento. "Ah, Fulana, te acho mais bela na tela do que ao vivo", diz à namorada em pânico. Seu passatempo agora é montar a agenda diária de lives. Ansioso, aguarda o início do tutorial sobre como montar tutoriais. "Como era a vida antes? Sei lá...".

Em Brasília, uma figura perambula feito alma penada no interior do Palácio da Alvorada. Empanturrando-se de comprimidos de cloroquina e fazendo exames cardíacos diários, tenta passar a imagem de indestrutível ao seu gado. Uma de suas reses, no cercadinho que ele não mais frequenta, gane, desconsolada: "O mito pegou a Covid-19!". Um varredor dos jardins da residência presidencial, encrenqueiro profissional, dá de ombros e diz: "Ora, mas não era apenas uma gripezinha? Uma histeria? E daí? Quem tem histórico de atleta não fica doente. Lamento, mas vamos todos morrer um dia. Quer que eu faça o quê? Meu nome também é Messias, mas também não faço milagres. E, além disso, eu sou peão, não sou coveiro". A figura perambulante não tem e não quer compaixão.

Incorrigível romântico, penso que o Brasil precisa desesperadamente de uma canção. Uma canção que expresse o momento que vivemos e que redima o País, que lhe aponte um rumo, que lhe dê perspectiva. Exato, uma canção redentora. Sabíamos tanto fazer isso, parece que desaprendemos. Um povo que fez tanta coisa boa, "Coração de estudante", "Vai passar", "Alegria, alegria", "Caminhando e cantando", entre outras, não pode ter perdido o estro. Sem essa canção necessária, os dias passam, ou melhor, voam sem sentido ou direção, numa mesmice de dar dó. Resta-nos destilar ódio em volumes industriais em nossas bolhas. Um ódio inútil, destituído de objetivos, um ódio que se limita a odiar. Quem comporá essa canção, que voz a cantará? Silêncio.

 

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