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O legado
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O legado

À memória de Erickson Mendes

A sirene mega-estridente da ambulância, ultrapassando a toda todos os carros na Av. Antônio Sales engarrafada, me descobre refletindo sobre esta nova situação que atravessamos. Novamente instalado em meu estúdio no Joaquim Távora, envolvido até o nível da impaciência com meu trabalho remoto (de remotas chances de dar certo), penso naquele ou naquela que célere segue, entre a vida e a morte, para o hospital. Escrevo num sábado, dia que Nelson Rodrigues dizia ser uma ilusão, luminoso e ventilado como soem ser os sábados de agosto, mês do cachorro doido. Escuto o barulho reduzir seu tom na distância, até tornar-se quase nada, o que me faz lembrar de Eliot: "Assim expira o mundo, não com uma explosão, mas com um suspiro". Homens ocos...

"É isso aí, amigo, é o novo normal!". A fala fanhosa do vendedor de lanche aboletado à minha porta retira-me do universo de minhas auto-indagações para me devolver ao mesmo ainda mais cabreiro. Novo normal? Não seria melhor chamar esse atual estado de coisas de "novo anormal"? O que havia antes da pandemia era algo normal? "No mínimo, morria-se menos", respondi a mim mesmo. Sem vontade de brigar comigo, leio no jornal que hoje o Brasil atingiria a marca de cem mil mortos pela pandemia. Subitamente distópico, imagino-me em plena Praça do Ferreira, um grande contador digital atualizando os óbitos no lugar da Coluna da Hora, milhares de pessoas desmascaradas com latas de cerveja nas mãos esperando o grande momento. Alcançada a marca, vaias mil.

Quando isto passar, se é que vai passar, que outro mundo emergirá da névoa pútrida deixada pelo coronavírus? Renasceremos melhores, solidários e mais humanos ou nos tornaremos ainda mais vis, egoístas e safados? Um exército de milhares de walking deads se levantará dos cemitérios para cobrar as devidas responsabilidades de quem simplesmente lavou as mãos com cloroquina e ozônio, aos berros de "E daí?! Não sou coveiro..."? Penso no que perdi e no que ganhei nestes últimos cinco meses. Penso no tempo em que fiquei trancado em casa, os dias marcados a carvão imaginário nas paredes do lar/refúgio. Penso naqueles que jamais verei e nos que sequer cheguei a conhecer. Outra ambulância, o mesmo som. Então, já naturalizamos o penar?

A ADEG informa: logo mais, Ceará e Fortaleza farão seus jogos de estreia na Série A do Brasileirão. Estádios de portas fechadas, arquibancadas vazias, as emoções do futebol filtradas pela fria tela da TV. As ruas lotadas de carros, os bares clandestinamente cheios, as filas nas portas dos shoppings, o povaréu nas feiras, nas praias. A gente não se emenda, a gente não tem jeito, damos risada da cara da morte. "Também, o que esperar de um povo que desafia a indesejada das gentes todo santo dia, meu caro?", disse de mim para comigo. O presidente, de agasalho esportivo e com mofo no pulmão, mandou-nos tocar a vida. Tocar a vida ou tocar a marcha fúnebre da vida? Esta a pergunta que não quer calar. Ave, Caetano, tua live/natalício foi um presente para todos nós.

 

Foto do Romeu Duarte

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