Logo O POVO+
Coisa de pele
Foto de Romeu Duarte
clique para exibir bio do colunista

Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Coisa de pele

Tipo Crônica

Separadas há meses pela pandemia, as pessoas sonham em se reencontrar. Tudo bem que elas já vêm ensaiando esse contato, contidas, entretanto, pelo receio de contrair o vírus ou novamente ser dele hospedeiro ou pela polícia, quando a cabeça de vento prefere a aglomeração da morte à solidão da vida. O homem, ser gregário, em toda a história das pestes e das pragas que assolaram este planeta, talvez jamais tenha sentido com tal intensidade a necessidade do encontro como agora. Nem tanto, quem sabe, para rever o outro, este representante sartriano do inferno, mas para exercer o seu sagrado direito de ser membro da manada humana. Ver e ser visto, conversar, interagir, paquerar, roubar um beijo, amar, coisas que hoje valem muito mais que ouro...

A distância e o resguardo que nos foram impostos criaram novas formas de relacionamento. No mais das vezes, somos apenas uma imagem na tela do computador nas inumeráveis lives de que participamos cotidianamente. "Vocês estão me ouvindo?", "Bom dia a todas e todos", "Faça perguntas pelo chat", as vastas bibliotecas por trás dos entrevistados, o álcool em gel e o sabonete líquido e as expressões faciais reduzidas ao que os olhos podem dizer ficarão como lembranças eternas deste triste ano mascarado. Isso se esses costumes não se prolongarem no ano que vem, coisa que ninguém gosta nem de pensar. Saudade de estar sem peias na praia cheia, na arquibancada do estádio lotado, no espaço apertado e gostoso de um abraço, até no bode de uma briga.

E por falar em gente junta aprontando mil e uma, a turma boa biriteira não vê a hora dos bares e botecos abrirem sem porém. É certo que vários já levantaram suas portas nos arrabaldes desta Loura Clandestina do Sol, enquanto outros aguardam a bandeirada sanitária do governador e do prefeito. Ao mesmo tempo, os habitués do sacrossanto ofício etílico, fartos de beberem em casa e sem coragem para dar uma de herói, petiscam o amargo tira-gosto da carência. No dia-a-dia desta distopia pós-verdade, nosso pensamento não se dirige à centena de milhares de mortos, mas à nossa própria satisfação pessoal, o que trai a nossa visão de mundo hedonista e consumista. Nada aprendemos com o morticínio, mesmo tendo arrastado pessoas próximas, e a ameaça da finitude...

Matutava sobre essas questões no jardim do meu estúdio quando a realidade, sempre ela, me devolveu ao frio arroz-com-feijão diário. "Ei, bota a focinheira, bicho abestado!", grunhiu a mulher do catador de lixo ao próprio, que passava com seu carrinho, ex-chassi de geladeira. "Não é focinheira, criatura, é máscara", respondeu o humilde trabalhador. "Que máscara o quê, vagabundo! Pra ti é focinheira mesmo, cachorro véi nojento!". Lembrei-me de Joubert, moralista e ensaísta francês: "A delicadeza é a flor da humanidade". Como o distinto e miserável casal conseguiu sobreviver à cruel doença? Mistério. Cheio até a tampa de tentar entender o ininteligível, resolvi voltar à casa a pé. Talvez o vento de agosto me aliviasse o juízo. Na coxia, uma garrafa, Corona. Desisto.

Foto do Romeu Duarte

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?