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O palavrão, este ser em extinção
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O palavrão, este ser em extinção

Tipo Crônica

Mesmo com a grande força que o nosso (des)presidente lhe tem dado, visível na fatídica reunião de 22 de abril deste ano, o palavrão vive seus momentos finais. Assim como a televisão matou a janela, vaticínio certeiro de Nelson Rodrigues, o politicamente correto tem minado o vigor do nome feio, ferindo-o de morte. Antes celebrado, louvado e até estimulado como sinal de poder viril e valentia, o palavreado escatológico tem sumido do cenário em razão da radical mudança de costumes da sociedade. Ainda dá o ar da graça nos estádios de futebol, estes divãs da psicologia popular onde catarses, pulsões e chiliques de toda ordem soltam suas frangas. Sim, houve um tempo, como disse Leila Diniz, em que merda, nas conversas, era vírgula. Hoje, nem vírgula mais há, ora, ora.

O respeito conquistado a sangue, suor e lágrimas quanto aos seus direitos pelo que antigamente se chamava de "minorias", os novos modos de vida impondo uma nova ética e a novilíngua internética têm alterado não só as relações sociais como também as formas de comunicação. Quem ousar manter o velho e carcomido comportamento preconceituoso, parafraseando um dos itens do estatuto da Padaria Espiritual, será chamado de medonho e pagará um mico daqueles na frente de todos. Dia desses, numa mesa de bar, assisti tristemente a um sujeito, com uma piadinha infame, dar uma de fiscal dos praticantes do amor que antigamente não se atrevia a dizer o seu nome. Linchado pelos olhares, só ele achou graça do que proferiu. Fechou a conta e saiu à francesa.

Uma nova pedagogia do viver se insinua e se firma cada vez mais no meio social, apesar do terrível retrocesso que experimentamos. Essa talvez seja a mais eloquente e pura expressão de resistência que até agora conseguimos produzir contra o obscurantismo miliciano-evangélico-ultraliberal que nos assola. A gradual eliminação do palavrão nos papos é uma das suas facetas mais evidentes. A aceitação do outro e a convivência com o diferente obrigaram-nos a rever nossos procedimentos, o que não quer dizer, de forma alguma, que perdemos a capacidade de nos indignar e que o nosso sangue agora é de barata. Contudo, não será com eufemismos que resolveremos o problema: traído pela esposa e filho de uma mulher de vida airada, não dá, né?

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Confesso que sofri para adotar esse novo way of life. Criado na Base Aérea de Fortaleza, ex-aluno do Colégio Cearense e torcedor do Ceará, tive no palavrão um dos alicerces da minha educação para a vida. Hoje, quando um se me escapa, rio o riso amarelo da vergonha. O dicionário está cheio de palavras que podem perfeitamente substituir os turpilóquios (e aí, gostaram desta?), tão sonoros e impactantes quanto. Quem sabe não tenhamos ainda nos livrado deles pelo fato de estarem na massa do sangue do brasileiro, esculachado patrimônio cultural. Mas, como canta Dylan, alguma coisa está acontecendo e você não sabe o que é, não é mesmo, Mr. Jones? "Cesse tudo o que a antiga musa canta, que outro valor mais alto se alevanta", recitaria Camões. Caraca...

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