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O Centro do Centro
Foto de Romeu Duarte
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O Centro do Centro

Ao Seu Raimundo Oliveira Araújo e distintas família, equipe e clientela

 

Freqüento o Raimundo Queijo (que a partir de agora denominarei de RQ) com assiduidade há quase 15 anos. Neste já longo período, acompanhei a paulatina transformação do singelo bar/mercearia em disputado e legítimo lugar do patrimônio cultural imaterial desta cidade. Aos domingos, quando o Centro fica entregue aos seus próprios fantasmas, o RQ é referência certeira de vida. Situado na esquina da Travessa Crato com a Rua General Bezerril, num dos locais mais antigos de Fortaleza, é também um pedaço do interior cearense na capital, reduto de fortes amizades desinteressadas e academia da fuleiragem alencarina. Impossível chegar lá infeliz e sair do mesmo jeito, melhor do que sessão de terapia. Nada como o divã da gargalhada para curar o fel da tristeza.

Nas domingueiras, ancoro meu boêmio barco no cais do RQ logo cedo da manhã. Meus camaradas já lá estão instalados há muito. Aboleto-me e peço a primeira de uma fila de cervejas. Após o primeiro gole, dedico-me a dois belos passatempos: a observação da e o comentário sobre a vida alheia. Um amplo toldo nos protege do sol e da chuva, porém nada pode contra a passagem do tempo. Se os bons momentos passam rápido, os maus fazem de chumbo os ponteiros do relógio. Já, já baterá o meio-dia e fim de recreio. Enquanto não chega a hora fatal, brinco a valer entre espumas e outras etílicas delícias. Olho para o velho sobrado defronte ao bar, que abrigou o cabaré do Zé Tatá, quanta história ele tem para contar. O mendigo pede algum para beber cana. Pois não.

Cabra bom de Chaval, longínqua terra de sal e penedias, Seu Raimundo é tranqüilo e disposto. Como todo comerciante que se preza, atende com zelo e presteza, não sem aqui e ali dar uma resposta marota com a sua língua afiada. As fotografias espalhadas pelo bar dizem de sua origem rural, ele encourado, de chapéu de couro, gibão, peiteira e perneiras, um vaqueiro exilado na cidade grande. Os olhos brilham quando fala do tempo em que campeava gado e dirigia caminhão e do dia em que resolveu deixar o frigorífico de lado para enfrentar um novo desafio. Vê-lo em ação é se certificar que o cearense nasceu para trabalhar. Às sextas, eu, cliente bissexto, recebe os amigos com um lauto cardápio de pratos tradicionais. "Vamos matar o que nos mata", ri-se...

Nestes enjoados tempos pandêmicos, tal qual o comércio em geral, o RQ viu sua fiel clientela minguar. A paranoia do vírus fez muita gente da turma boa do batente, a contragosto, ficar trancada em casa. Mas, aos poucos, como sói ser nas crises, as coisas vão se ajustando, com todos os cuidados possíveis. De manso em manso, os habitués retornam à roda, com as experiências e lições que a peste lhes deu. A iminente eleição municipal fez do bar/mercearia o cenário ideal para o desfile dos candidatos e de suas patotas, um verdadeiro talismã eleitoral. No penúltimo domingo, nossa pequena mesa discutia e apostava no placar do Clássico-Rei. "O Leão vai ganhar com um gol no fim do jogo", disse um pedinte, só curtindo. E mais essa, RQ, de botequim a oráculo...

Foto do Romeu Duarte

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