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Distopia ou realidade?
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Distopia ou realidade?

Desligou o serviço digital de comunicação por vídeo. Mais uma aula terminada. Os rostos congelados dos alunos e das alunas transformados em ícones na tela do computador lembraram-lhe de que fazia quase um ano que não frequentava presencialmente seu local de trabalho nem mantinha contato físico com seus colegas e turmas. Com o recrudescimento da doença e a falta de vacinas, não sabia quando voltaria a cumprir esses rituais. Ouvia as sirenes das ambulâncias sozinho no escritório, com seus livros, revistas e anotações. "E se isso demorar a acabar, meu caro, teremos estudantes que se formarão sem conhecer seus cursos?", perguntava-se. Estava cansado, o trabalho em modo remoto transformara-o num animador de auditório, um Chacrinha doutor.

Correu os olhos pelas notícias das redes sociais. O (des)presidente, órfão do loser colega norte-americano, firme no seu compromisso administrativo com a morte. O sinistro da Saúde negando saber da falta de oxigênio em Manaus, mesmo tendo sido informado do ocorrido dez dias antes do início do desastre no qual várias pessoas morreram sem ar no pulmão do mundo. Uma médica, cearense, assessora do "pesadelo", louvando as virtudes inexistentes da tal cloroquina. O pgr agindo como o consigliere jurídico sabujo da famiglia, ameaçando o Brasil com "estado de defesa" em vez de cumprir o seu dever. A pior legislatura federal brazuca em décadas, covarde, venal, asquerosa. O STF calado, o povo desmascarado na praia, os ativistas de sofá no seu afã inócuo...

O olavista embaixador idiota (pleonasmo) procurando briga com a China e a Índia, nossos fiéis parceiros quando estávamos no BRICS e países-reis dos imunizantes. A carga de vacinas desaparecida no Amazonas. Os negacionistas já se preparando para dar carteirada e furar a fila. A esquerda redigindo notas de repúdio e manifestos enquanto a Venezuela manda tubos de oxigênio para os estados do norte. O (des)governo propondo armar a população para que esta se defenda do atroz comunismo. O janota e malandro governador paulista posando de herói. O governador, o prefeito da capital e o secretário estadual da Saúde, máscaras sobre faces tristes, que dureza. Instituições de ensino querendo voltar a todo custo justo quando a moléstia começa a matar crianças.

Arrasado, procurou no dicionário on-line de português o significado da palavra "distopia". Disse-lhe o pai dos burros que o tal substantivo feminino é um "lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação", associando-o à antiutopia. Foi até a janela que enchia de luz o ambiente, abriu-a e mirou o lá fora. Caía uma chuva fininha, daquelas que molha, no Joaquim Távora. "Distopia, série-catástrofe na qual os episódios se amontoam como tragédias diárias, ou somente a fria e cruel realidade, com um escuro poço sem fundo?", disse de si para consigo. Deu por findo o turno da tarde, comprou uvas na vendinha e foi tentar ser feliz em algum bar vazio. "Amanhã estarei mudo, mais nada", o verso da poeta dito pelo carro que passa.

 

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