Logo O POVO+
A Partilha
Foto de Romeu Duarte
clique para exibir bio do colunista

Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

A Partilha

Tipo Crônica

Agora que não tem mais ninguém, agora que não há mais papai, mamãe e titia nem qualquer pessoa para tomar conta deles, só existe um apartamento e um monte de coisas cujo destino precisa ser definido. Engraçada a sina dos objetos: nascem do desígnio de alguém, mas não possuem vontade própria, ou, como diz o poeta, não têm paz. Vivem para servir, eis a sua essência. Uma vez imprestáveis ou obsoletos, acabam no limbo/lixo dos trastes, inservíveis, mesmo carregando tanto simbolismo, tanta memória. Forma, função e sentido, características tanto da arquitetura quanto de todos estes outros artefatos à nossa volta. Ficarão felizes com seus novos donos? Continuarão servindo silenciosamente, como sempre? Ou lhes serão impostos novos usos? E quais?

Foi com esses pensamentos frouxos que adentrou no antigo lar dos pais e da tia. Papel e caneta (azul) na mão, começou a listar o que via. O sofá da sala, onde recebeu, insone, a notícia da morte do genitor. A mesa e as cadeiras dos muitos almoços de Natal. A penteadeira mais que centenária, com sua multidão de fantasmas do outro lado do espelho. O carrinho de bebidas, móvel de que sua mãe o proibiu (sem êxito) de se aproximar. As imagens dos santos da devoção dos velhos. Os muitos bibelôs miúdos que lhe valeram tantas sovas na infância por motivo do jeito descuidado. A surpresa do reencontro, depois de tantos anos, com o troféu de honra ao mérito que recebera no colégio em 1970, o qual há muito dava como perdido. O relógio de parede com a sua hora morta.

O caneco de aço da Base, que tanto lhe aplacara a sede de menino depois dos rachas. O canto vazio da geladeira idem, que já havia sido doada ao diligente porteiro da noite. O fogão, onde tanta comida boa se fez. A máquina de lavar, ansiando por roupa para desencardir. A cristaleira, o armário-louceiro, pratos, copos e talheres postos em sossego. A enceradeira parecia rir da idade da máquina de costura de pedal, que zombava de volta. As pinturas em porcelana, rosas, flores, damas, palhaços, crianças, arte ingênua desprezada, porém de imensurável valor. Televisores, câmeras, gravadores, lanternas, rádios, redes, sapatos, cadeiras de rodas, tanta coisa besta, meu Deus. A cama de casal, com seu criado mudo, onde ele e seu irmão foram feitos com muitíssimo amor.

Mas foi quando viu os armários com pastas contendo documentos e fotografias que sentiu um aperto no coração. Imagens de passados distantes e próximos, de entes queridos idos, de situações memoráveis, de como eu era feio (como se ainda não fosse), de como fomos felizes um dia. Cartas, bilhetes, receitas, boletos, recibos, livros, revistas, palavras cruzadas. Como num museu, aqueles objetos desenhavam a trajetória de pessoas, contavam a história de vida de uma família. "Como dá-los, como reparti-los, se nos acompanharam até aqui?", perguntou-se. A luz do fim da tarde alaranjava o interior do apartamento. Imerso em lembranças, fechou a porta da morada e tomou o elevador. "Feliz 2020", desejou-lhe alegre o porteiro da noite, a geladeira do lado, embaladinha.

Foto do Romeu Duarte

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?