Logo O POVO+
Turbilhão
Foto de Romeu Duarte
clique para exibir bio do colunista

Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Turbilhão

À memória de Charles Bukowski

Os dias passam e ele dentro deles, arrastado numa correnteza do tempo, sem saber onde vai dar, talvez num bueiro escuro, de onde não possa mais sair ou voltar. Pensava nesta frase, que parecia uma boa abertura de crônica, enquanto perambulava pelo Joaquim Távora, no pingo do meio-dia, atrás da terça de cana que lhe abrisse o apetite. Engraçado, tem pensado muito em comida e cada vez tem menos fome. Aboletado no balcão do bar vazio, pensa na vida, esta já longa aventura de mais de seis décadas. Chega um papudinho e lhe oferece um caju. "Ainda há salvação para o homem", pensou, enquanto retribuía ao pobre diabo um bom lavado. Súbito, deu-se conta de que até aquele momento ainda não dissera uma só palavra, apenas dizia de si para si...

A incomunicabilidade, este era o terrível monstro que o amedrontava, que o atormentava à noite, que tolhia a sua fala, que o obrigava a calar mesmo quando tinha razão. "A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão", a letra da música do Chico, passados tantos anos, fazia sentido novamente e isso era o que lhe apavorava. Em meio ao país dividido, sentia-se mal nas rodas à esquerda e à direita, talvez por constatar amargamente a cruel impossibilidade de algum consenso, mínimo que fosse. E ele sofria mais que todos, embaixador frustrado, cuja mãe sonhava em vê-lo servindo em Londres ou Paris. A inviável paz, o impraticável aceno, o irreal aperto de mãos, o tempo dos intolerantes, ele mesmo um deles. O doce caju soube-lhe amargo, qual fel.

Sua mente sobrevoava essas cordilheiras do pensar quando foi trazida à dura realidade pela reprise do sinistro espetáculo do decapitado ministro da cultura do atual (des)governo. Gestos graves e solenes ensaiados, a cruz de Caravaca de uma banda, o retrato do presidente por trás, menções à "máquina de guerra cultural" e a uma "arte heróica e nacional" que, se não for assim, "não será nada", nazismo puro copiado de um antigo discurso de joseph goebbels (tem tipo menor, revisor?), o chefe da propaganda hitlerista. Ao meu lado, o generoso coleguinha biriteiro tascou um "heil, hitler", emendando ao tristíssimo slogan um sonoro flato com a boca. "Nós é que bebemos e eles que ficam tontos", a turma do funil é sábia. O ator saiu de cena, mas a peça segue lépida.

Terça bebida, pagou a conta, passou a régua, despediu-se do taberneiro e do mais novo amigo e cortou caminho pela Vila Rebouças até chegar à Visconde do Rio Branco. De lá, foi até a um humilde restaurante onde comeu uma maminha acebolada dos deuses. Depois, desnorteado, pois de férias, não tinha aonde ir. Um calor da enésima câmara do inferno empapava-lhe o corpo de suor. Deixou-se levar pelo fluxo dos carros que fugiam do sol escaldante pela Antônio Sales. "Seria a cidade, nesta quente modorra, uma miragem?", pensou ele, esbaforido, naquela avenida nua de árvores. "Quem sabe alguma possível felicidade?", desejou. A voz do poeta bêbado invadiu-lhe os ouvidos: "Se você vai tentar, vá até o fim, caso contrário, nem comece". Desistiu, estavam verdes.

Foto do Romeu Duarte

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?