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Vendo a vida de dentro de um carro de aluguel
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Vendo a vida de dentro de um carro de aluguel

Tipo Crônica

Cosmopolis é um filme de 2012, escrito, produzido e dirigido pelo genial diretor de cinema canadense David Cronenberg e baseado no romance do não menos genial escritor norte-americano Don de Lillo. Na película, o jovem bilionário Eric, interpretado pelo morcegão Robert Pattinson, a fim de cortar o cabelo para conter seus demônios internos, circula em sua limusine pelas ruas de Manhattan, totalmente engarrafadas por motivo dos protestos contra a visita do presidente dos EUA à cidade e do funeral do seu músico predileto. Na viagem, vai pensando na sua vida-mercadoria, entre uma beijoca e outra na Juliette Binoche. Guardadas as proporções, as intenções e as companhias, foi mais ou menos assim que me vi outro dia, indo de uber ao curso de arquitetura da UFC.

Nos semáforos, entregadores de comida em domicílio, com suas motos e bicicletas, aguardavam o verde. "Tu reclama da tua jornada de trabalho, da carteira que não é assinada, dos perigos no trânsito. Tu reclama muito, macho! E é porque tu anda de moto. E eu, aqui de bike?", disse, injuriado, o ciclista, quando o sinal abriu. O uberista, gel no cabelo à Neymar, aparelho nos dentes e fã de sertanejo, emendou: "O desemprego está diminuindo, doutor, graças ao governo". "Você é formado?", perguntei. "Sim, sou engenheiro", respondeu ele. "Dobre ali à esquerda na Lauro Maia", pedi. Placas de venda de imóveis nos postes, "Aluga-se" por todos os lados, lojas fechadas, gente dormindo no chão. No rádio do carro, dólar a R$ 4,32, euro a R$ 5,24, Ibovespa ruim. "Tudo OK?".

Começou a chover a cântaros. Em cinco minutos, a Aguanambi deixou de ser avenida para voltar a ser riacho. Singrando a correnteza, fomos ter às terras altas do Bairro de Fátima. "Sonrisal ou Alka-Seltzer, doutor?", indagou-me o uberista. "Não, obrigado, não estou com azia", disse-lhe. "Não, não é isso", falou-me, rindo, "perguntei de que material são feitas as obras da prefeitura". "Uma mistura de anti-ácido com placebo, já que muitas vezes executadas em lugares onde não há necessidade delas", falei. O pensamento voou e foi bater na periferia de Fortaleza, sempre tão desassistida e em último lugar na lista de prioridades. "Lá na igreja tá o maior enxame: 'Vote no candidato tal!'", animou-se o cara. Criamos uma massa de consumidores, mas não de cidadãos, valha.

Foi só a dupla de drunk bad-girls Maiara e Maraísa terminar Aí eu bebo para o locutor, com sotaque paulistano, informar que o ministro posto ipiranga havia chamado os funcionários públicos brasileiros de parasitas. Aí foi aquele aperto nos testículos e um embrulho no estômago. "29 anos de ensino, pesquisa e extensão para ouvir isso de um rentista banqueiro caloteiro? E o que ele diria de um barnabé que passou 28 anos sem fazer nada na Câmara?". "Sentiu o golpe, né, doutor?", curtiu o jovem chofer. "Coisa de tigrão metido a tchutchuca, só isso", retruquei. Dobramos à direita na Avenida da Universidade em busca do destino final. Despedimo-nos e desci da viatura. Ia passando um colega que votou no inominável. "Bom dia, parasita", falei-lhe. Cara de paisagem e adeus...

Foto do Romeu Duarte

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