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O vírus e a crônica
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O vírus e a crônica

A Diogo Fontenelle

Poderia escrever sobre um sujeito que, contrariando os desesperados pedidos da mulher e das filhas para permanecer no recesso do lar, evitando o contato com a besta-fera, vai ao escritório trabalhar e insultar seus adversários políticos nas redes sociais. No caminho, que preferiu fazer a pé, no molhado feriado de São José, viu uma cidade que parecia ter sido vítima de uma bomba de nêutrons. Os poucos e corajosos remanescentes da hecatombe olhavam uns para os outros como seres ameaçadores. O bairro, após a chuva, resplandecia nas quinas dos prédios, nos passeios, nos muros que celebram, cada vez mais, o divórcio dos prédios com as ruas. A água da poça que lhe foi jogada no rosto pelo carro veloz trouxe-o de volta à dura realidade da crueldade humana.

Poderia escrever sobre um outro sujeito, tão teimoso e rueiro quanto o anterior, que na sua escapulida pela Loura Virótica do Sol encontrou, sentado no banco de um abrigo de ônibus, um velho de barba branca e dono de um cálido sorriso. "Não seria melhor o senhor ficar em casa? O risco é maior para os idosos". Disse-lhe o velho: "Venci a peste negra no século XIV, que matou 50 milhões de pessoas na Europa e na Ásia. Debelei o vibrião colérico e o bacilo de Koch em meados do século XIX, os quais dizimaram milhões de almas. A varíola, a gripe espanhola, o tifo, a febre amarela, o sarampo, a malária, a aids. Sobrevivi a tudo isso. Essa covid-19 para mim é fichinha", riu-se. "Quem é o senhor?!", perguntou o sujeito. Súbito, o ônibus parou e o velho nele entrou.

Poderia escrever também sobre uma renitente confraria, que em dias melhores se reunia cotidianamente num bar para tomar umas ao cair da tarde e que, agora, em tempos de quarentena, o faz clandestinamente para espantar a solidão. "Parece que a proibição faz a sede aumentar, né?", diz o biriteiro para o coleguinha ao lado, que responde: "É igual ao tempo de eleição. O botequim fechado, todo mundo lá dentro enxugando, de repente a batida na porta. "Diga a senha". A de hoje foi "coronavírus"". Gargalhada geral. Um cliente tristonho falou: "Somos uns irresponsáveis. Criticamos o presidente pelo comportamento imbecil dele e fazemos a mesma coisa". Um anjo desfilou sobre o balcão do boteco. "Tem sempre um estraga-prazer, né?", ralhou o dono do bar. Silêncio...

Entretanto, o que temos para hoje como tema é o antigo ditado que minha mãe sempre repetia: "Boa romaria faz quem em sua casa está em paz". Não que o ambiente doméstico seja para mim uma tortura; o fato é que nunca me habituei a ficar muito tempo nele. A onipresença do vírus, amplificada pelas mídias, nos transforma em criaturas cada vez mais paranóicas. O freqüente ato de lavar as mãos, os cumprimentos com os cotovelos e os pés, a distância regulamentar entre as pessoas são modos de vida de uma nova (e lúgubre) ética. Espirros e tosse são a própria confissão de um crime hediondo, cuja pena é o isolamento total. A cidade calada diz dos seus escassos aventureiros. "Quando a alegria voltará?", pergunto-me. "Never more", responde-me o corvo no poema de Poe.

Foto do Romeu Duarte

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