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Ela, a tal, outra vez
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Ela, a tal, outra vez

Tipo Crônica

A Cláudio Menezes

Lembram-se dela, a tal, que uma vez me visitou, dando-me um susto de que até hoje tremo só de lembrar? A bonita senhora de cabelo grisalho, belas pernas e a bordo de um justo vestido preto que realçava suas formas? Pois bem, caros e caras, ela veio ter comigo novamente. Curtia a quarentena aqui no escritório quando, envolta numa pérfida nuvem de enxofre, ela surgiu. O coração aos pulos, meti-me debaixo da mesa. "Saia daí, covarde, ainda não é a sua hora", disse-me a víbora, com um Gitanes na ponta da longa piteira. "Você sempre aparece assim, sem avisar?", falei, esgueirando-me e limpando os joelhos. "Não, às vezes faço o sujeito sofrer até eu chegar e zás!". "E o que a traz aqui, neste mau momento?", indaguei. "Uma certa curiosidade, gatinho".

"E que curiosidade é essa, maligna?!", arrochei. "Sabia que eu estou na moda, baby? Todo mundo agora só fala em mim. Você tem uísque aí?". Servi-lhe uma dose. "Esquerda, direita, negro, branco, pobre, rico, straight, gay, Fortaleza, Ceará, estou na boca de todos, mon amour", sibilava. "Você ainda não me respondeu", cobrei. "Queria saber como vocês estão suportando o estrago que o meu estagiário, o coroninha, está fazendo por estas bandas", dando-me o seu belo sorriso mortal. "O dano é grande, no corpo, na alma e na cabeça, mas, como tudo na vida, vai passar". A malvada deu uma gargalhada que se fez ouvir a quilômetros. "Interessa-me mais esta última parte, a cabeça, cher", picou. "A barra está pesada, só notícia ruim, mas não me deixo abater", objetei.

"Já ouviu falar em necropolítica, doçura?", disse ela, separando as sílabas da última palavra. "Claro, como não, é o nosso cardápio diário", respondi. "Outro dia, uma blogueira, em meio à pandemia e à reclusão, deu uma festa privê e, a certa altura, bradou: 'Foda-se a vida!'". Logo após, esse que nos (des)governa, ao ser perguntado sobre as mortes pela Covid-19, lacrou: "E daí? Sou Messias, mas não faço milagre". Mais que a banalização da morte, há em curso um culto à morte, cínico, debochado, mas vai passar, ah, vai...". Ela quase se engasgou de tanto rir. "Ai, adoro quando você dá uma de filósofo, o Nietzsche da Base Aérea...". Imperturbável, redargui: "Você pode muito, mas não pode tudo. A vida é maior que você". "Quer subir, aliás, descer?", falou. Gelei, é sal, é agora!

Súbito, um novo vapor sulfúrico bafejou a sala e de dentro dele saiu um rapaz gordinho, a cara redonda cheia de espinhas, de pouco ou nenhum banho, coberto de mosquitos, aos prantos. "Que choro é esse, coroninha?", perguntou a cobra. "Dona, é melhor a gente ir embora, pegar o beco. Tem um bicho aí que é muito pior do que eu, que causa mais prejuízo", ganiu. "E que bicho é esse?", quis saber a megera. "O bozovírus. Emburrece, embrutece as pessoas, apaga nelas qualquer traço de inteligência e sensibilidade, enche de ódio os seus corações, torna-as violentas e as transforma em gado. Para mim, pode ser que achem uma vacina, mas para ele não". Tal como chegaram, sumiram. Vivo, pensei: "Ri por último quem ri melhor. O diabo é essa catinga do inferno".

Foto do Romeu Duarte

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