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A casa
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

A casa

Tipo Crônica

À memória de Haroldo Sousa

Menino rueiro dos caminhos e descaminhos da Base Aérea, sujeito conhecido pelo amor à vida mundana, nesta segunda-feira completo vinte dias de lockdown, trancado em minha casa no Dionísio Torres. A beleza sonora desta palavra da língua de Eliot e Pound não encontra uma parceira à altura na melancolia, que é um dos seus efeitos. A esta altura, via TV, já sou doutor em cultura e natureza: os reinos animal, vegetal e mineral me são íntimos, já visitei todos os museus e cidades históricas do planeta, virei fã do ornitorrinco e do funk carioca (gêmeos siameses). Além disso, sou de forno e fogão e já li/vi/ouvi todos os discos, filmes e livros. Nos papos virtuais, perguntam-me como estou vivendo. "É cômodo", respondo, "todo dia indo de um cômodo a outro da casa".

Miesiano e detalhista, se já tinha tendência a ser vítima do TOC, esta caseira estada prolongada foi a sopa no mel. As reclamações quanto à paginação dos pisos dos ambientes, aos arremates construtivos, à posição dos móveis e aos muitos problemas de manutenção predial são motivos para a minha família querer me encarcerar no depósito do quintal. Tornei-me também um expert em sons: consigo diferenciar as sirenes das ambulâncias e da polícia, as várias buzinas dos deliverys, os roncos das motos dos motoboys e dos bandidos. Às vezes, saudoso, abro o portão para ver a rua, espiar o lado de fora. Uma desolação de dar dó. Um cachorro deitado à sombra do benjamim ri da minha cara. Os pássaros se vingam do meu passado gaioleiro. Não, nada e ninguém.

Sinto que muitos já se fazem a pergunta que não quer calar: "E a birita?". Juro na cruz que inteirei, na presente data, duas dezenas de dias (vá lá, quase) abstêmios. Não que a doméstica adega não esteja repleta de rótulos sedutores; a falta das amizades, algumas delas infelizmente subtraídas do nosso convívio pela cruel doença, tal como o pranteado amigo, a quem esta crônica é dedicada, tem me desviado dos goles diários. Redescobri a delícia dos refrescos, da água gelada, da água de coco, do cafezinho da tarde. Não curto mais como antes o prazer de beber sozinho. Biritar para mim hoje só faz sentido no meio de uma turma grande e boa, risos e copos a ecoar e tilintar. Fora isso, é vinho tinto e Chet Baker. Saudade das minhas catedrais, os bares.

Resta a casa como objeto de reflexão. Esta casa sessentona, que conheci adolescente, que foi o endereço dos meus pais e que hoje nos abriga. Esta casa, cujo silêncio só é interrompido pelo praguejar contra a tricéfala crise que nos acomete, pandêmica, econômica e política. Dia desses, peguei-me lendo Gaston Bachelard: "Pois a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz freqüentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela". Percorri calmamente seus ambientes, olhei suas paredes, andei por seu jardim. "Há quanto tempo estava distante deste universo?", indaguei-me. "Brincadeira de asa, cada um na sua casa". Tudo é aprendizado...

 

Foto do Romeu Duarte

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