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Coração oculto
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Coração oculto

Tipo Crônica

E se um pai suplicasse a um escritor que escrevesse a biografia de seu filho, morto aos 23 anos de idade? E se esse filho fosse um dos criminosos mais procurados do Rio de Janeiro? Toda boa história começa assim, como um "e se" forte, uma pergunta que atravessa a narrativa e faz o leitor perseguir as respostas até o final.

O escritor, a princípio, estava preparado para trabalhar em um roteiro de cinema sobre esse tema, mas o projeto não vingou, apesar dos pedidos insistentes do pai do personagem. Anos depois, a esposa do autor encontrou as anotações da pesquisa em uma gaveta, leu e disse: isso rende um romance. Ele concordou. Dedicou-se à escrita por dois anos e meio mais ou menos e o livro acaba de ser lançado, em plena pandemia. O nome do personagem é Pedro Dom. Do pai, Victor. Do escritor, Tony Belloto, que atendeu gentilmente ao meu convite e participou do clube do livro da Pós-Unifor semana passada. A esposa dele vocês sabem quem é.

Pedro Dom era filho de um ex-policial, de uma família de classe média do Rio de Janeiro, aparentemente com todas as condições de ter seguido uma vida estável e tranquila. Mas os motivos que movem os desejos e fragilidades de uma pessoa nem sempre correspondem às aparências. A narrativa tomou rumos inesperados e ele virou um especialista em assaltos a apartamentos. Não há registro de homicídio em sua ficha policial, até o fim, mas as testemunhas relataram extrema crueldade nas abordagens.

Ao redor de qualquer pessoa existem inúmeras versões. Vale para qualquer um de nós, somos diferentes de acordo com o lugar, as circunstâncias e sobretudo, as companhias. Para as vítimas, Pedro Dom era um criminoso cruel. Para os policiais, um bandido esperto. Para as namoradas, bonito e carinhoso. Para o pai, um rapaz inteligente, Robin Hood dos tempos modernos. A culpa mordaz pelo desfecho triste de Pedro Dom acompanhou o pai até o fim. Ele se perguntava como deixou acontecer, como foi incapaz de evitar. O pai que abraçou o cadáver do filho e tentou tocar, através do ferimento, no seu coração oculto.

O romance de Tony Belloto corre veloz, é uma leitura rápida e marcante, entrecortada por músicas da época, fatos históricos, lembranças de um passado recente que o leitor reconhece. Não faltam diálogos realistas, muitas cenas de sexo, a vida real de Pedro com doses de ficção, detalhes sobre os crimes do planejamento à comemoração do êxito. Pedro Dom torna-se um garoto muito próximo de quem lê sua história.

Essa é uma das forças da literatura, nos levar para lugares onde nunca estaríamos, ou nunca desejaríamos estar. A cena de um crime. A conversa de criminosos. Os bastidores de uma batida policial. Os acertos de contas. Estamos cercados de violência por todos os lados, na vida real. A razão para ler um livro dessa natureza está na possibilidade de uma compreensão mais ampla da condição humana.

Pedro Dom ficou preso uns dias no Espírito Santo, com nome falso. Por coincidência, eu conheci a penitenciária em novembro de 2019, quando participei do projeto Ler Liberta e fui conversar com os internos sobre literatura. Fomos recebidos com o show da banda de música da unidade prisional. Quando entramos eles tocavam "Enquanto houver sol", dos Titãs. No dia do clube do livro eu contei esse episódio ao Tony Belloto. Essa música diz muito sobre nossa angústia contemporânea. A violência destrói tudo ao redor. Mesmo assim ainda sobra a esperança de que escrever livros e conversar sobre eles pode mudar alguma coisa, principalmente nos lugares onde o encontro com o sol tem hora marcada.

 

Foto do Socorro Acioli

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