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Ao Mestre Júlio, uma carta plena de mar
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Ao Mestre Júlio, uma carta plena de mar

Tipo Crônica

Ouvi dizer que as pessoas que descobrem bem cedo o que vieram fazer na Terra são espíritos fortes. Chegam destinados ao Dom, o trabalho mesmo com graves percalços, acontece como deve ser, como se algo inabalável decidisse o rumo de tudo. Dom e Destino formam o par que direciona os passos de quem nasce com a sorte de enxergar a estrada desde a infância, quando ela mal começou.

Nunca vou esquecer quando o senhor narrou o dia em que seu pai permitiu que o ajudasse com as fotografias. Consegui ver o jovem Júlio correndo para agradecer ao mar, horas e horas diante dele, embriagado de mistério e felicidade. Dali em diante uma nova vida começou e os retratos pintados foram a sua maneira de melhorar o mundo. Sua sorte e missão.

Fiquei comovida com uma entrevista sua dizendo que recebe muitas fotos de pessoas, mortas e vivas, que precisam nascer de novo. Suas mãos devolvem alma e beleza, paz e esperança, luz para olhos amorfos, lábios novamente prontos para dizer as palavras que a saudade implora para ouvir.

Sou mais uma das pessoas a quem o senhor devolveu a vida. Foi perto do mar que entreguei nas suas mãos a única foto que tenho da minha mãe. Seu nome é Graça.
Onze anos depois da sua morte, pedi ao senhor que ampliasse aquela imagem de sua infância. Eu só queria uma foto maior para colocar na minha casa, trazer sua presença para minhas filhas e também para mim.

Algumas semanas depois do nosso encontro a moça-luz que nos apresentou, Iana Soares, mandou um minuto da sua voz contando que conversou com minha mãe antes de pintá-la, que falou com aquela menina triste e que voltou de lá com a certeza de que o novo retrato a deixaria feliz, enfim.

A foto que o senhor pintou cobriu os anos destruídos pouco a pouco pela doença mais cruel de todas e pela vida infeliz de minha mãe. Suas mãos devolveram a ela o dom de seu nome: Graça. Renascemos todas: eu, ela, minhas filhas. Novamente o elo se fez.
Somos quatro dentre tantas e tantas pessoas que foram salvas pelas cores que o senhor devolve a quem precisa tanto ser amado em lembranças.

Há uma frase do Roland Barthes que me faz pensar nos seus retratos pintados: o que a fotografia reproduz ao infinito só aconteceu uma vez. Ela repete mecanicamente o que nunca poderá repetir-se existencialmente. Seu trabalho é transformar o nunca mais em para sempre. O senhor tem noção do tamanho da beleza que há nisso?

O senhor guarda na alma a paz de que precisamos tanto, Mestre Júlio. Louvo seus olhos e suas mãos, seu coração e voz. Para retribuir o que o senhor fez por mim de forma justa só mesmo se eu lhe desse o mar inteiro, como naquele dia de felicidade e paz da sua infância. O mar que azulou o dia em que as tintas começaram a fazer mágica nas pontas dos seus dedos. Pois receba esta carta com o mar dentro dela, mestre Júlio. Faço com as palavras o que o senhor faz com as tintas: permito que a alegria dure para sempre. E assim será.

Foto do Socorro Acioli

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