Logo O POVO+
Pássaros que cantam em grego
Foto de Socorro Acioli
clique para exibir bio do colunista

Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Pássaros que cantam em grego

Tipo Crônica

Uma das partes mais desafiadoras da vida de uma escritora são os convites inesperados e irresistíveis de trabalho. Uma conferência e um curso de escrita para jovens em Mumbai; a proposta de curso para estudantes de português na África do Sul; uma semana de oficinas literárias em Beirute: para as três situações eu disse sim menos de cinco minutos depois de abrir o e-mail. Sempre me pareceu a melhor parte da minha profissão a possibilidade de viajar pelo mundo. Meus livros já me levaram a quatro continentes e aguardo ansiosa o dia de completar o mapa, quando a literatura me conduzirá à Oceania.

Além das viagens, chegam os convites para escrever textos de vários gêneros. Neste ano de 2020 as demandas têm sido surpreendentes, inusitadas e sobretudo, desafiadoras. O Instituto Serrapilheira me convidou para escrever um conto de ficção científica sobre os estudos da Matemática que analisam a lógica das árvores da Floresta Amazônica. Impossível recusar a um chamado da floresta e do Suplemento Pernambuco, que publicará o texto. Escrevi o prefácio de uma coletânea de contos sobre a juventude, escritos por jovens; preparei e publiquei alguns textos sobre a Itália e Elena Ferrante; uma análise do livro e do Japão de Haruki Murakami, além de alguns outros projetos de escrita que o contrato de sigilo não permite anunciar, mas que considero aventuras pelos túneis das palavras.

Um dos convites que mais me moveu foi a missão de escrever o prefácio de uma nova edição de "Um quarto todo seu", de Virgínia Woolf - felizmente preservando a tradução que considero mais simbólica para este título. Diante do desafio voltei os olhos para a vida e obra da autora, tentando entender as cores de sua percepção de mundo. Uma travessia dolorosa. Percorrer o passado de Virginia Woolf pelas casas onde viveu, pelo que deixou escrito, pela tentativa de viver, é, também, um percurso pelas sombras da mente.

Logo após a morte de sua mãe, em uma das primeiras manifestações de sua frágil condição mental, ela relatou que ouvia pássaros cantando em grego. Isso me marcou e me colocou diante dela, uma jovem atormentada e brilhante. Virginia foi criada em um ambiente ao mesmo tempo de estímulo e privação intelectual, onde os homens saíam para estudar nas universidades e as mulheres preparavam-se minimamente para um bom casamento. Enquanto isso, ela participava da conversa dos pais, dos irmãos e seus amigos intelectuais, lia o máximo que podia e observava a realidade e todas as suas camadas, sempre privada de ser tudo o que poderia.

Gosto de imaginar o quanto seria surpreendente para Virginia Woolf ver os avanços das mulheres escritoras em relação ao ano de 1928, quando ela proferiu as conferências que resultaram no que conhecemos como o livro "Um quarto todo seu". Eu teria gosto em contar que hoje as mulheres ganham Prêmio Nobel de literatura, publicam em muitas línguas, viajam pelo mundo, assumem sua voz literária. Ainda somos minoria, ainda temos conquistas a realizar, mas já é tudo muito diferente daquele Outubro, daquele tempo de injustiças mais marcadas. Se hoje eu percorro o mundo levada pela minha Literatura, aceitando convites e sendo levada pelas boas surpresas, agradeço também à Virginia Woolf, cada vez mais viva e livre entre nós.

Leia também | Confira outras crônicas de Socorro Acioli, escritas exclusivamente para o Vida&Arte

Foto do Socorro Acioli

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?