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Quando Pedro fala
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Quando Pedro fala

Tipo Crônica

Um dos motivos de ler é viver, por algumas horas, uma vida que não é sua. Leitores que buscam esta forma indireta de experiência são atraídos pelo cenário dos livros, o lugar onde acontece a história. Quando soube do fenômeno da autora britânica Rachel Cusk, o que me levou a procurar seus livros foi a premissa do volume um: quem narra é uma escritora que viaja para ministrar um curso de Escrita Criativa na Grécia.

Li poucas resenhas antes de começar, embarquei despreparada, mas já sabia que não seria uma narrativa inocente ou despretensiosa. O que faz de Rachel Cusk um caso que atrai atenção é justamente o que ela elabora como estrutura invisível de um projeto complexo. Em "Esboços", apesar de ser narrado em primeira pessoa, só sabemos o nome da personagem quase no final. Essa omissão é uma peça importante dentro do seu projeto, porque a narradora também está invisível.

Já ouvi de alguns profissionais experientes do ramo: o bom fotógrafo é o que está invisível na cena da foto. Este é um dos pontos aparentes do seu truque. O leitor sabe que ela vai viajar, que vai realizar um trabalho, mas sabemos pouco sobre ela. O que recebemos, o tempo todo, é a chance de enxergar exatamente o que ela enxerga, sob suas lentes.

A personagem conversa com as pessoas. Faz um voo inteiro falando com seu vizinho, ouvindo as mirabolâncias de sua vida, de sua família, das ex-mulheres, dos filhos, do que foi crescer na Grécia. Depois isso acontece naturalmente com as pessoas que passaram por seu caminho durante a viagem. Até chegar no meu espaço favorito: a sala de aula.

Os cursos de escrita são exatamente daquela maneira: uma reunião de pessoas muito diferentes, mas que querem escrever. Por talento, vaidade, necessidade, por engano, por erro, por prazer, mas querem. A professora pede que contem o que aconteceu com eles pela manhã, antes de chegar na sala de aula. Há uma chave na pergunta, que só alguns percebem. Ela não espera que falem a verdade, mas que contem uma boa história. É incrível quando acontece.

Neste livro as coisas mais importantes estão construídas sob a pele do papel. É assim que ele vai acontecendo, os olhos da narradora são câmeras atentas para as pessoas ao redor. Ela sabe escutar. Ela gosta de escutar. E eu nunca vou conseguir entender como alguém quer ser escritor se não consegue ver e ouvir os outros atentamente, ler nas entrelinhas, nos entremeios, nas pegadas dos descaminhos.

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O mais genial deste recurso é que não ficamos frustrados com a narradora invisível. A explicação está naquela frase famosa do Dr. Freud: quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo. Sabemos dela pelo que valoriza, julga, pondera, aponta, destaca, elogia, vamos fazendo um mosaico dessa mulher, concordando e discordando. No segundo volume, "Trânsitos", o projeto segue assim, observando o mundo e falando pouco de si mesma. Escrever literatura é uma espécie de jogo. Sem manual, sem regras. Só ganha a partida quem entende isso.

Foto do Socorro Acioli

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