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A consciência da solidão no perigo
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A consciência da solidão no perigo

Tipo Crônica

Na capa do livro está escrito Sebastopol, título de uma palavra só. Se não for familiar para o leitor, o primeiro movimento é procurar informações sobre esta palavra e assim começa o relacionamento com o livro, o autor e os seus narradores. Sebastopol é uma cidade portuária na península da Criméia, nomeia uma famosa batalha e foi palco de um cerco na Segunda Guerra Mundial. Duas cidades americanas tem o mesmo nome: na Califórnia e no Mississipi. Tólstoi escreveu os "Contos de Sebastopol" (ou crônicas, em algumas traduções), publicado em 1888.

O livro que tenho em mãos foi escrito por Emília Fraia, lançado cento e trinta anos depois do livro do Tólstoi e percorre o universo contemporâneo com passos firmes. Seus pedaços de mundo são imersos em múltiplas guerras cotidianas. Pequenas e grandes guerras, breves e demorados processos de quebra, desilusão, engano. Até o momento o livro já foi vendido para quatro países, para o cinema e teve um dos contos publicado na New Yorker, uma das revistas literárias mais importantes do mundo.

A estrutura do Sebastopol de 2018 é, sim, emprestada da estrutura do Tólstoi, em 1888. Uma influência declarada pelo autor. A ideia de dividir o livro em três histórias, por exemplo. A decisão de nomear cada uma com um mês - Dezembro, Maio, Agosto. A consciência do artifício da ficção como documento de um tempo, já que a data de 2018 está logo nas primeiras páginas. Tudo isso foi um empréstimo claro e honesto, pois todo escritor maduro sabe que é tolice negar suas filiações literárias. Eis aqui, então, um autor contemporâneo que anuncia claramente a influência de um clássico, mas que desenvolve seu trabalho como narrador marcando sua identidade, visão de mundo e deixando as suas próprias pegadas.

A primeira personagem é uma escaladora que sofre um grave acidente. O segundo, um velho solitário que recebe um visitante. A terceira, dois artistas em conflito com a realidade ao seu redor, diante de obras inacabadas e fracassadas. Um resumo apressado assim pode deixar a sensação de uma névoa de pessimismo, mas este definitivamente não é um dos efeitos do livro. O que está posto é a "consciência da solidão no perigo", essa verdade tão dolorosa quanto fortalecedora.

Uma das grandes qualidades na escrita do Sebastopol é seguir o fio da voz desses narradores e perceber como eles vão longe em suas memórias e percepções. Cada conto é um mapa do mundo aberto na nossa frente. Cada personagem traça sua rota, a partir do que que é dito. São percursos conhecidos ou sonhados, histórias dentro das histórias, o poderoso efeito do myse em abime. É nesse ritmo que o livro prende, envolve, segura o leitor até o fim.

Meu conto preferido foi Maio, o segundo. Em um trecho dele está contido o centro de força da obra: "Nilo pensa que as histórias dos homens são uma só. Então, quando nosso passado é esvaziado, quando nos livramos dele podemos viver outras vidas, encontrar a nossa história nas outras vidas, como se houvesse uma continuidade dos corpos e das consciências".

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Em Sebastopol, todos os personagens estão buscando sentido após uma ruptura - brusca ou lenta - nas suas ilusões de equilíbrio. Mas quem não está? A pandemia é uma grave experiência de ruptura e no momento estamos no meio da fenda. Os personagens que ganharam voz com o livro do Emilio Fraia nos fazem companhia. Consolamos uns aos outros, afinal. O mundo é grande. Como diz Mari, amiga da Lena: as pessoas precisam acreditar em alguma coisa. O projeto de alcançar o cume mais alto dos sete continentes é uma metáfora estruturante. Todo mundo precisa ter os seus Seven Summits para sair da fenda e voltar a seguir.

Foto do Socorro Acioli

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