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Encômio
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Encômio

Tipo Crônica

Quem morre sem segredos não viveu direito. Alguns conseguem esconder a vida inteira, levam para o túmulo e deixam os fatos esfarelando junto com os restos mortais. Outros contam tudo nos anos finais, quando perdem a memória, o pudor, o medo de revelar o que aconteceu, de verdade, com suas vidas, mas não conseguem guardar os segredos para sempre. Contam quando são idosos e ninguém terá mais coragem de culpar ou condenar. Contam sem saber da gravidade do que estão fazendo, sem consciência alguma do perigo. Conheço gente que morre de medo de chegar à velhice e falar o que não deve, trocar nomes, deixar escapar um suspiro proibido.

Tem gente que guarda os segredos a sete chaves, não deixa pista. Morre calado, sim, mas quer que a família e os amigos saibam de tudo depois da sua morte, quando não estiver mais aqui para sofrer as consequências. Foi isso que aconteceu com um dos clientes do ex-detetive particular australiano Bill Edgar. Prestes a morrer, ele queria dizer algumas coisas, mas sabia que a família não leria sua última carta em público, quando tomasse conhecimento do que estava escrito. Foi assim que Bill Edgar se ofereceu para ler o polêmico encômio durante o funeral e tudo recomeçou em sua vida.

Foi o primeiro de muitos. Agora a profissão de Bill Edgar é ser Confessor de Caixão. O moribundo tem que pagar o equivalente a sete mil dólares para que ele apareça no seu funeral e saiba o momento exato de pedir a palavra. Imagino que ele se apresente, explique a situação e comece a leitura. A profissão exige coragem e frieza. A família não pode tomar conhecimento antes, sob o risco de impedir a sóbria performance. E, na tentativa de impedimento, ele precisa ser muito firme. O contratante já morreu, mas é questão de ética e respeito pelo defunto ler palavra por palavra.

Uma carta depois da morte pode conter qualquer tipo de confissão: assassinato, filhos escondidos, enganos de paternidade, adoção não revelada, traição, um grande amor. Os subterrâneos dos segredos são território infinito. Bill Edgar contou à BBC que um dos seus casos mais emblemáticos foi o do homem que pediu que ele lesse uma carta dizendo ao melhor amigo que sabia que ele tentou seduzir sua esposa, enquanto o então defunto estava à beira da morte. O ex-amigo saiu pela porta dos fundos, enquanto a leitura da carta mandava que outros se retirassem também.

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A ideia de ler o encômio no funeral pode ser um ato de caridade ou de vingança. Cumpre a função de uma declaração de amor à família, aos amigos, um largo agradecimento por todas as coisas boas que viveu com eles, mas também pode ser um golpe final dos mais sórdidos. Apesar dos riscos, há algo de saudável em planejar a própria morte, preparar-se para o dia que chegará para todos nós. Alguns escritores fazem o movimento contrário e pedem que seus manuscritos sejam queimados após a sua partida deste mundo. Franz Kafka até tentou, mas não foi atendido pelo amigo Brod. Os leitores agradecem.

O curioso é existir essa profissão. Está nos jornais, é a pura verdade. Não existe ficção maior do que a realidade que acontece todos os dias sobre a face da Terra. Bill Edgar é pago para dizer tudo que o defunto não teve coragem de assumir em vida e por mais que seja curioso pensar nisso, há um peso de tristeza na situação. Acho que feliz de verdade é quem encerra seu ciclo sobre a terra concordando com o refrão que Edith Piaf eternizou: não me arrependo de nada. Não quero gastar sete mil dólares para que um encômio resolva o que não fui capaz de resolver. Depois da morte pode ser tarde demais.

Foto do Socorro Acioli

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