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Como se fosse um jantar qualquer
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Como se fosse um jantar qualquer

Tipo Crônica

O ano de 2020 ficará marcado como o tempo em que as grandes fraturas foram expostas no Brasil. Há muita crueldade e violência na condução da tragédia que a pandemia provocou neste nosso País, já tão desigual. Essa atmosfera conduziu o narrador contemporâneo a despir-se de inocências. Nessa altura não há mais paciência para ler uma voz narrativa ficcional que desliza medrosa pela superfície, que apenas chapinha e nunca se arrisca. Pois arriscar-se brutalmente é o grande mérito do romance de estreia de Marcelo Vicintin, "As sobras de ontem", publicado pela Companhia das Letras em plena pandemia.

São dois narradores. O primeiro é Egydio, o protagonista, um jovem milionário, herdeiro de uma grande empresa de navegação, mas que não resiste à tentação de roubar. (Por que os ricos roubam?) É ele quem começa a contar uma pequena parte de sua vida, depois que foi preso em uma operação da Polícia Federal, saiu da penitenciária para prisão domiciliar e está preparando um jantar no seu apartamento. Há ecos de Gatsby, mas sem carisma, nem mistério.

A segunda narradora é Marilu, uma moça de classe média que deseja ficar rica, ter status e está disposta a tudo para isso. É um percurso muito diferente de Egydio, mas os dois estão na mesma cidade, têm amigos em comum e vamos acompanhando os seus passos em São Paulo enquanto o jantar de Egydio está sendo organizado.

A noite do jantar é uma poderosa alegoria neste romance, é para este ponto que todos fios vão convergir. E o narrador associa o evento ao filme "O Anjo Exterminador", de Luis Buñuel e ao famoso Baile da Ilha Fiscal, que aconteceu dia 9 de novembro de 1889 e foi o último evento da monarquia brasileira.

Um dos pontos altos do livro é ter suas cenas entrecortadas por este filme e por alguns aspectos do Último Baile do Império. Uma das grandes fraturas brasileiras é a desigualdade aceita e alimentada pelo pensamento de grande parte de uma elite que recusa qualquer movimento a favor de uma diminuição deste abismo. Os narradores deixam isso muito claro nos seus comportamentos e o leitor pode oscilar entre a náusea e a revolta.

Há uma tensão crescente no texto, outro mérito de Marcelo Vicintin, uma expectativa sobre esse desfecho que é muito bem construída. A qualidade de um texto literário está não só na história a ser contada, mas na forma, na estrutura e sobretudo na voz dos narradores. Ambos, Egydio e Marilu são irritantes e controversos. Egydio é arrogante, tenta demonstrar erudição, vive preso às marcas e aparências.

O texto é tão atual que dói. Revolta. É caricato, mas não teria como ser de outra forma. Este livro de estreia de Marcelo é um ato de ousadia, pela coragem de falar do que ninguém fala, na contramão dos grandes temas da literatura contemporânea e de apresentar personagens sem caráter, sem carisma, simulacros de muitas figuras reais que andam por aí. É corajoso, especialmente em 2020, ano de pandemia. As máscaras estão todas no chão, junto com os mortos, os incêndios, o aumento da miséria. Mesmo assim os bailes continuam, taças e faisões flutuando, como se fosse Império, como se nenhuma tragédia estivesse acontecendo.

Foto do Socorro Acioli

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